
Este texto não contém spoiler
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Van Beethoven, de acordo com o crítico
alemão Paul Bekker, tem uma obra musical destacadamente vinculada à liberdade,
atributo com amplo alcance uma vez que tal característica se estende desde o
campo político à esfera individual, reservando a este gênio um lugar de honra
na história da música do ocidente. Mas há dois lugares que lhes são igualmente
reservados: em Los Angeles e no coração de Nathaniel Ayers, um indivíduo
esquizofrênico e morador de rua, cujo amor pela obra do compositor de Boon o compele
a tocar um violino com apenas duas cordas, e postar-se aos pés de uma estátua
dedicada à sua memória, num ato especial e simbólico de reconhecimento a sua
maior referência artística, contrariando a noção de que a ausência de sanidade
mental constituiria obstáculo para o exercício da contemplação da riqueza
artístico/musical, a qual pode e deve se realizar com liberdade na alma do ente
humano.
Qual
a relação entre um músico excepcional cuja sensibilidade e talento suplantaram a
surdez progressiva, a qual não o deteve para compor a 9ª sinfonia, obra declarada
patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco e um homem que executa algumas
de suas peças musicais num violino com apenas duas cordas, em que pese o
significativo abalo em sua higidez mental? A evidência converge a uma única e
possível resposta, porém, afirmar simplesmente que a música perfaz o elemento comum
a dois seres humanos separados no tempo seria reducionismo, ante a exigência de
enfrentamento de outras questões verdadeiramente sutis.
Robert
Fripp, guitarrista que trabalhou com músicos mundialmente expressivos, afirmou
que “A música é a arquitetura do silêncio”; tal declaração traduz uma ideia
sofisticada, para a qual, num esforço de melhor compreendê-la, me socorro na
seguinte imagem: a partitura está para a música, assim como a tela está para as
cores. Tal analogia impõe reconhecer que a informação de uma peça musical inscrita
numa pauta ou uma pintura lançada em um quadro, são manifestações físicas de algo
que mentalmente já havia se operado, ou seja, é a tradução literal do que se
concebeu no intelecto, e a qualidade da de tal construção no plano da realidade
varia significativamente de pessoa para pessoa.
O
Solista, filme dirigido por Joe Wright e lançado em 2009, nos revela a história
verídica de Nathaniel Ayers, interpretado por Jimmy Foxx, um morador de rua que
possui um passado verdadeiramente especial e carrega no presente as consequências
devastadoras da esquizofrenia, condição que sensibiliza Steve Lopez, colunista
do Los Angeles Times, o qual, recuperando-se de um acidente ciclístico, caminha
pelas ruas e encontra Ayers, cuja personalidade o impressiona e o faz pesquisar
sua vida para enfim escrever uma série de artigos a respeito desse indivíduo
tão singular.
O
Solista é uma obra cinematográfica que parece ter atingido o coração das
pessoas pela capacidade de contar uma história real na qual a arte musical perfaz
o background da narrativa, e esta condição é fundamental para que a dignidade
humana seja alçada ao plano de primazia da percepção dos expectadores, uma vez
que salta aos olhos e coração de quem tem o privilégio de assisti-la, uma proposta
que transita acentuadamente em cada cena, qual seja, revelar que o ser humano é
especial a despeito das circunstâncias.
Em
Beetthoven, de acordo com a sensibilidade de Nathaniel, parece existir uma espécie
de compromisso tácito em proporcionar uma experiência musical plena, e para ele
tal condição fora espontaneamente discernida em particular. Com uma carreira
promissora que iniciara num prestigioso conservatório e interrompida em razão
da doença mental, a obra de Beethoven significava a salvação no sentido de que
a música daquele icônico e magistral compositor preenchia o vácuo deixado pela
interrupção traumática causada pela esquizofrenia, haja vista a experiência de
proximidade com a obra do mestre transportá-lo a um estado de graça
libertadora, com a qual o fardo da indigência se tornava menos pesado.
Há
um aspecto bastante importante na narrativa, qual seja a percepção de que intervir
na vida de uma pessoa, a despeito da melhor intenção requer sensibilidade para
que a mesma não se converta em negação da liberdade, o que no caso do filme é
demonstrado à medida que Ayers, mesmo sob os grilhões da doença, resiste à tentativa
de ser transformado em objeto de intervenção do outro, condição discernida por
Lopez à medida que reconhece que a aproximação com aquele homem fora
prevalentemente estimulada por uma demanda pessoal, qual seja, escrever uma
história para seus leitores.
A
feição singular da obra de Beethoven para o coração do personagem Nathaniel, reflete
o quanto a arte serve de blindagem a uma alma machucada pelos açoites da
existênica, pois, o enfrentamento das intempéries em sua caminhada pessoal sob
o manto da música é como se a obra do mestre o guiasse numa trajetória capaz de
conduzi-lo a um estado de profundo contentamento e paz interior.
Se
a liberdade é a marca da obra de Beethoven, tal característica aplicada à vida
de Nathaniel Ayers produziu alegria e elevação espiritual em medida
diametralmente superior a seu estado esquizofrênico, pois nele o amor pela
música fora manifesto em sua forma mais pura, ou seja, sem a presunção soberba
de um aspirante a astro que reduz o exercício da arte a um mero propósito egoístico
de realização pessoal, e sim sob reverência sincera por se reconhecer partícipe de uma verdadeira
ode a alegria.
Por Maurício Alves.
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