
Tempos de Paz é um filme que conta com a competente direção de Daniel Filho e participação de dois atores geniais, Toni Ramos e Dan Stulbach, cujo cenário é o Brasil de 1945, período em que o Estado Novo de Vargas encontra-se em plena vigência, agora promovendo ajustes ou, conforme o título da peça que inspirou a produção para o cinema, "Novas diretrizes em tempos de Paz".
Em que pese o roteiro nos brindar com questões ricas e pertencentes à subjetividade humana, o tema que elegi a partir dessa obra, passaria incólume não fosse sua prevalência na cenografia da película e que nos remete exatamente ao traço negativo que a teoria da administração burocrática carrega ao longo de sua existência, pois, uma vez implementada na Administração Pública sem a devida razoabilidade, invariavelmente caminha ao excesso de formalismo que dificulta o regular fluxo dos procedimentos, condição que transforma os documentos (leia-se instrumento escrito), por exemplo, em elemento de perversa opressão.
Antes de adentrar mais exaustivamente ao tema que proponho, qual seja, a ideia reducionista de que a prova documental ocupa um lugar de primazia em relação aos demais meios de prova nas relações entre Estado e cidadão, cumpre apresentar a história que constitui mote à narrativa, bem como o pano de fundo que lhe empresta feição histórico-político-sociológica. Na Alfândega, no Rio de Janeiro, então Capital da República, um funcionário burocrata, interrogador alfandegário que pertencera à Polícia Política de Getúlio Vargas, receoso de sofrer retaliação de alguma vítima contra quem praticara tortura, será responsável por conduzir a entrevista de Clausewitz, um Polonês que pretende estabelecer-se no Brasil.
Não obstante tal pretensão coincidir com inúmeros outros casos em que estrangeiros elegem o país tropical como seu novo lar, este imigrante, ao desembarcar, surpreende a todos na recepção ao declamar, com grande sensibilidade, um poema de Carlos Drumond de Andrade, e tal fato chega aos ouvidos de Segismundo, responsável por entrevistá-lo.
Conduzido à sala de imigração, a entrevista transcorre sob uma atmosfera pesada, com o funcionário impondo a todo instante seu poder, baseado no fato de que detém a prerrogativa para decidir o destino daquele refugiado que, driblando o medo de não lograr êxito em seu propósito, mobiliza os recursos de que pode se valer: um pálido sorriso otimista, apologia ao Brasil e uma dose exagerada de simpatia para com o gélido funcionário público.
A relevância do trabalho do agente alfandegário estava no fato de atentar-se para eventual tentativa de ingresso de nazistas no país, circunstância que, somada às tenebrosas memórias da brutal violência que infligia a presos políticos que interrogava/torturava sob a chancela do Estado, cooperava para imantá-lo de uma sádica obstinação persecutória.
Em determinado momento, Segismundo afirma que a única coisa que conta para validação de qualquer pleito/demanda é um documento - o que vale é o instrumento escrito! O diálogo reveste-se de enorme dramaticidade uma vez que o ex carrasco tende a utilizar o antigo modus operandi de que se valia outrora para a condução da entrevista, haja vista notar que as mãos do polonês em nada se assemelhava a de um lavrador, conforme inscrito em sua qualificação documental.
O tenso diálogo traduz uma espécie de movimento pendular, em que ora o funcionário afirma uma onipotência outorgada pelo cargo, ora mostra-se fragilizado pela contundência quase pueril dos argumentos do entrevistado que assume ser, em verdade, um ator, confissão que promove a transição ao momento chave daquele acertar de contas com a própria consciência do entrevistador, à medida que os fantasmas de suas recordações relativizam o poder institucional que ostenta, diante de um homem frágil e de sorriso franco cujas palavras parecem perfurar-lhe, visceralmente, corpo e alma.
O implacável personagem de Ramos, um burocrata que afirma ser o documento o instrumento primaz para validação de um ato, aparentemente recua dessa assertiva ao propor um desafio ao estrangeiro; o mesmo propõe que aquele ator realize uma performance capaz de fazê-lo chorar, sendo essa a condição para que o rapaz seja admitido em território brasileiro.
Aqui o funcionário não trabalha com qualquer categoria vinculada à razoabilidade para relativizar a legitimidade quase sagrada que confere ao documento, ou seja, ao inferir que o polonês ocultara seu verdadeiro ofício, seria natural e coerente que aquele indeferisse ad nutum tal pleito, mas, ao contrário, Segismundo parece disposto a uma concessão, em que pese aquele haver sido desmascarado, cujo propósito relaciona-se mais a uma tentativa de provar ser autoimune a qualquer fator externo que lhe manifeste um traço sequer de empatia, condição que legitimaria o exercício da implacabilidade.
É praxe, no mundo do direito, o advogado pugnar, no bojo da petição inicial, que o magistrado defira todos os meios de prova em direito admitidos (documental e testemunhal), tendo em vista tal condição viabilizar, substancialmente, o patrocínio de uma causa por este profissional. A experiência do personagem de Dan Stulbach não comporta o testemunho de terceiros ante a flagrante impossibilidade procedimental, restando-lhe a autodefesa, cujo exercício mostra-se deveras difícil em razão de ser forçado a exprimir suas emoções em língua estrangeira.
A despeito das subjetividades que permeiam o roteiro, cuja estrutura original fora quase integralmente respeitada pela direção de Filho, a afirmação do personagem central de que a prova documental compreende fator decisivo às deliberações institucionais, traduz uma clara demonstração de que o documento reduzido a escrito, desacompanhado do valor que a oralidade carrega, perfaz, em boa medida, a instrumentalização da opressão que, malgrado não atingir o corpo do oprimido, lhe inflige danos de natureza moral tão ou mais significativos.
É praxe, no mundo do direito, o advogado pugnar, no bojo da petição inicial, que o magistrado defira todos os meios de prova em direito admitidos (documental e testemunhal), tendo em vista tal condição viabilizar, substancialmente, o patrocínio de uma causa por este profissional. A experiência do personagem de Dan Stulbach não comporta o testemunho de terceiros ante a flagrante impossibilidade procedimental, restando-lhe a autodefesa, cujo exercício mostra-se deveras difícil em razão de ser forçado a exprimir suas emoções em língua estrangeira.
A despeito das subjetividades que permeiam o roteiro, cuja estrutura original fora quase integralmente respeitada pela direção de Filho, a afirmação do personagem central de que a prova documental compreende fator decisivo às deliberações institucionais, traduz uma clara demonstração de que o documento reduzido a escrito, desacompanhado do valor que a oralidade carrega, perfaz, em boa medida, a instrumentalização da opressão que, malgrado não atingir o corpo do oprimido, lhe inflige danos de natureza moral tão ou mais significativos.
No mais, recomendo esse belo filme desejando que todos possam fazer outras leituras a partir do roteiro, que inclusive é profundo e muito aberto à apreensão de tantas questões que afetam a alma do ser humano.
Por Maurício Alves,
Salvador, 6 de maio de 2018.
Ficha técnica:
Roteiro: Bosco Brasil;
Produtores:
Elenco
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Ailton Graça Honório
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Anselmo Vasconcelos João
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Atila Balazs Szemeredi Passageiro Húngaro
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Bernardo Jablonsky Professor Mesquita
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Daniel Filho Doutor Penna
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Dan Stulbach Clausewistz
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Felipe Martins Ratinho
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Iafa Britz Emigrante
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Louise Cardoso Clarissa
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Marcos Flaksman Padrinho
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Maria Maya (I) Enfermeira
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Tony Ramos Segismundo
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