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CULTURA E CIDADANIA: UM ELO NECESSÁRIO

 

   O caldo revolucionário fermentado na Bahia no início do século XIX, fora imantado pela irresignação ao cativeiro bem como pelo componente religioso especialmente dos negros islamizados que aqui aportavam, condição a produzir significativo receio do governo, uma vez que o Haiti demonstrara, pouco tempo antes, extraordinário exemplo emancipatório através de uma revolução cujos ecos indicavam a necessidade de precauções quanto à gestão da condição negra no país.
    Evidentemente que as elites brasileiras em nada refletiam a mais remota disposição em considerar uma efetiva emancipação do povo negro escravizado, uma vez que a economia do império dependia de sua mão de obra, significando afirmar, que qualquer reflexão acerca da escravidão, estaria circunscrita aos interesses de uma elite cuja razão de fundo a orientar seus passos apenas incluía a manutenção do status quo.
    O conteúdo básico a balizar a hegemônica opinião acerca das sublevações negras no período retro indicado, compreende a ideia de vocação ao crime a caracterizar os negros insubmissos, cujo reducionismo notadamente advindos da prevalente e rotunda ignorância de senhores de escravos, destoava de arguta percepção de pouquíssimos indivíduos que identificavam, no elemento islâmico, forte evidência do caráter belicoso e insubordinado - notadamente dos negros ussás -, conforme depreende-se de riquíssima passagem da obra Fluxo e Refluxo de Pierre Verger.
    A obra de Verger possui o escopo de reproduzir a dinâmica do tráfico de escravos que ocorria entre o golfo do Benin e a Baía de todos os Santos, no lapso temporal compreendido entre os séculos XVII e XIX, processo atravessado pelo protagonismo do tabaco como elemento de importação em razão de sua relevância no mercado baiano. Deste modo, revela-se de capital importância discernir que, malgrado a compreensão de que as revoltas eram simplesmente a manifestação dos sentimentos perversos e cruéis dos negros (VERGER; 1976, pág. 356), esse gérmen revolucionário que em sua matriz islâmica indica apurada sofisticação de tais indivíduos oriundos da África Central (com destaque aos ussás), reunia, através desse recorte étnico, os elementos emancipatórios determinantes a uma consciência elevada de sua condição, ou seja, a sede e vigor pela liberdade lhes inflamava a alma sobretudo pelo elevado significado do alcorão como referência supra existencial.
    No bojo das sublevações que ocorreram entre 1807 e 1835 na Bahia, reside não apenas a repressão violentíssima a tais levantes por parte do estado brasileiro, mas, igualmente, permanente estado de alerta por parte do poder público e grupos hegemônicos à medida que a recorrência de tais manifestações contra a escravidão, cujo protagonismo dos ussás merece destaque, impunha medidas estratégicas notadamente o cultivo das divisões entre diferentes nações que, na África, se mantinham em estado de animosidade. Tal prática, consubstanciada na tolerância de festividades de escravos pertencentes a diferentes nações, notadamente algumas cindidas pela belicosidade recíproca em África, porém em consonância pela conversão ao islã, afluíam às ruas da Bahia (Salvador) para os batuques, festas que, à luz do entendimento de muitos, representavam estímulo à desordem. Não obstante, havia quem considerasse tais ajuntamentos de escravos uma oportunidade para o recrudescimento de animosidades, à semelhança do que cria o Conde dos Arcos, autoridade contemporânea a uma importante rebelião ocorrida em 1814, a qual, à época, determinou grave recomendação do Governador Geral do Rio de Janeiro a que aquele adotasse medidas duríssimas contra os insurretos. O Conde em comento, entendia que a tolerância a tais manifestações públicas dos negros significava medida adequada à manutenção do desafeto a marcar determinadas nações, mormente ussás e nagôs, condição que, por assim dizer, servia de óbice a rebeliões.
  O cenário acima descrito compõe, para além do recorte histórico no qual é possível inventariar as condições em razão das quais as rebeliões da comunidade negra encontrou - em que pese malogradas pela violenta repressão estatal - fôlego para sua concepção, interessante e importante expressão do arcabouço cultural da negritude no Brasil, mormente na Bahia, cuja dimensão religiosa, jungida ao componente multicultural compreendido na interlocução de diferentes nações das quais derivaram escravos estabelecidos na Bahia especialmente, representou uma intensificação, em significativo lapso temporal, da ânsia de liberdade expressa por Vicente Ferreira Pastinha, ou simplesmente mestre Pastinha, baluarte da Capoeira Angola, quando pretendeu oferecer-nos uma descrição dessa extraordinária arte.
    A propósito desse ícone da Capoeira na Bahia, merece atenção sua história pessoal de defesa da arte, exercício e condição existencial de um indivíduo cuja trajetória, marcada pela resistência em favor da Capoeira Angola, exige uma detida reflexão acerca da razão de fundo a orientar a disposição inflexível de cultivo desse componente cultural infundido como traço indissociável do ser, no centro do qual habita a compreensão da liberdade a despeito dos limites impostos pelos processos e estratégias de exclusão da ordem vigente.
1.  CRIMINALIZAÇÃO E ESTEREÓTIPOS
 1.1.  O projeto de exclusão e os vínculos comunitários do povo negro
   O presente trabalho, em que pese não possuir o propósito de sublinhar individualmente os que possuem inegavelmente papel relevante na história de resistência e manutenção da arte, não se imiscuirá de reconhecer relevo àqueles cuja história pessoal encontra-se atavicamente vinculada a uma postura inquebrantável na missão de evitar que a Capoeira se diluísse no imaginário e obscuridade da memória ancestral. 
Sob tal compreensão, impende destaque ao fato de que a religião, elemento de coesão insurrecional em dado lapso temporal, fora, como importante instrumento de atratividade simbiótica entre diversas nações africanas, transmutada de modo a oportunizar que a Capoeira igualmente assumisse, no bojo do agir dos escravizados, protagonismo simbólico e transcendente na caminhada emancipatória, a qual, alcançando o estágio hodierno, expressa os diferentes modos pelos quais se tem afirmado como instrumento libertário.
  Em rota de convergência, forçoso frisar que a estratégia de bestializar o africano em quadra histórica cujo marco perfaz aproximadamente a segunda metade do primeiro milênio, compreende uma interpretação na qual alguns pressupostos se apoiam, notadamente o componente religioso, o qual, usado pela Europa católica como arcabouço no centro do qual encontrava-se inscrita a ideia de “natural” submissão do negro africano, tendo em vista o desconforto causado pelo cativeiro de brancos europeus - ainda que os mesmos resultassem de captura de guerra -, finca suas bases nas relações comerciais desiguais com o continente africano, do qual tornou-se imprescindível a emergência de um dogma conveniente, qual seja, a objetificação do negro, objetivo para o qual os europeus escravistas emularam as rivalidades locais com vistas à ampliação mercantilista através da criação de postos de captura e depósito humano, processo no qual a subversão do caráter originário de escravidão marcado como decorrência da guerra, transmutou-se em feição comercial.
    Aliada aos interesses econômicos expansionistas imediatos, é no marco da coisificação do africano que a escravidão assenta seu lastro ideológico fundamental, uma vez que se ancora na legitimação religiosa, a qual, usurpando em grande medida a humanidade do negro, naturaliza e valida sua dominação, sua redução aviltante, significando afirmar que a ausência de reconhecimento da dignidade de tais povos instrumentaliza a opressão e, portanto, afirma o poder do opressor.
   Em consonância com a percepção de que a objetificação do negro africano corresponde à expressão de poder que desencadeia a dominação do comércio marítimo e consequente opulência europeia através da instrumentalização de corpos para o trabalho e mentes ao cativeiro ideológico, é possível identificar a noção de impropriedade na manutenção da prática escravista sobre povos europeus, haja vista povos de fenótipo semelhante e eventualmente ligados pela religião católica significar um obstáculo ético à escravização.
    A diluição da dignidade é corolário da expansão comercial, ou seja, uma sombra que persegue o corpo da desigualdade que se instala como projeto, em nome do qual a reação que inegavelmente se manifestara como luta, igualmente extraiu, da arquetipia de diversos povos africanos, os achados necessários à configuração do que se chamaria Capoeira, elemento do qual a apropriação pela comunidade negra possui significado amplo, haja vista a ocupação das ruas pelos capoeiras e a consequente percepção de que tal exercício representava um desafio à ordem vigente, exige considerável ponderação.
   A  estratégia de que sempre a elite mandatária brasileira lançou mão, com vistas à repressão sobre os elementos de natureza cultural que derivam dos povos e classes historicamente oprimidos é o ordenamento jurídico, pois a norma legal, imantada da presunção de constitucionalidade, abstração e universalidade, compreende a ideia que mais eficácia comporta para o processo repressivo sobre os indesejáveis, razão pela qual, convém uma análise do dispositivo que, despudorada e flagrantemente criminalizou a prática da Capoeira.
 
CÓDIGO PENAL DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. DECRETO NÚMERO 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Capítulo XIII, Dos vadios e capoeiras.
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena: de prisão celular por dois a seis meses. Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
  Inicialmente, é de se verificar, com detida atenção, o destaque para as expressões “ruas e praças”, condição a demonstrar, imediatamente, que o mecanismo legal repressor forjado pelo legislador brasileiro contempla, na concepção da lei, o entendimento de que a rua é o território no qual a “capoeiragem” se expressa, e, somada a isso, é possível constatar, no propósito criminalizante, o potencial que os capoeiristas incorporariam para o aprofundamento da insegurança que o espaço público oferece naturalmente.
    Não é de se desprezar que o contexto político no qual a Capoeira fora formalmente criminalizada compreende período em que a república contava com apenas um ano, significando afirmar que a constituição republicana fora concebida no ano seguinte, qual seja, 1891, aspecto no qual se depreende a dimensão a que se relacionava qualquer traço da cultura brasileira de vínculo com o povo negro. O estereótipo atribuído às manifestações culturais de matriz afro-brasileira estava no centro de um projeto de caráter excludente, porém, não apenas isso. Criminalizar uma arte multidimensional como a Capoeira explicita uma reação de blindagem a qualquer componente que represente uma ameaça por diferir das práticas culturais de raiz europeia por exemplo, na qual reside, à luz do entendimento dos donos do poder, os referenciais adequados à construção de uma ordem social que conserve, por meio da vigilância e controle, o guia para a formatação do “cidadão de bem”.
    Em consonância, é revelador o quão a lei em comento reproduz, no imaginário coletivo, o vínculo da maldade com a cultura negra, mormente pela associação com o delito, condição a revelar uma certa disposição de ruptura com a ordem, haja vista o comando legal asseverar absoluta intolerância com “tumulto” e “desordem”, ambos considerados resultantes típicos da prática da Capoeira, previsão que apenas destina-se à repressão, ou seja, nega o diálogo com a cultura pátria. A opção por tal conduta criminalizante revela um processo de invisibilidade que naturalmente visa empurrar a comunidade da capoeiragem aos extratos marginais da vida social, resultando de tal projeto a necessidade de denso vínculo comunitário, o qual dá lastro aos indivíduos que comungam da arte como elemento de transcendência e ao mesmo tempo de resistência à opressão que se manifesta no chão da existência, ou seja, concretamente.
    Convém salientar o fato de que a repressão à Capoeira reproduz uma estratégia originada da compreensão de que a luta consubstanciava-se em instrumento para as hordas de malfeitores, condição expressa nas maltas que, especialmente no Rio de janeiro, causavam temor a ponto de provocar uma reação institucional tão radical conforme intervenção na esfera da legalidade. Ocorre que outro aspecto importante no contexto de repressão à arte diz respeito à utilização de capoeiristas como instrumento para defesa de interesse pessoal de políticos, bem como no bojo da rivalidade entre as correntes monarquista e republicana, as quais, no interior da disputa pela hegemonia, se valeram dos bandos cujo maior ativo era a capoeira, os quais, inseridos numa teia complexa da realidade social, haja vista a desigual condição a que permaneceram submetidos os ex-escravizados e seus descendentes, muitas vezes aderirem a quem lhes pagava por serviços de sabotagem a manifestações públicas como comícios por exemplo de ambas a correntes políticas, servindo assim, de ferramenta à desordem que encontrava sua conveniência quando necessário.
   No seio dessa flagrante contradição é possível vislumbrar um método através do qual a elite hegemônica mantém, por um lado, o discurso moral, conservador e que ganha substância na realidade institucional a manifestar-se como lei, a qual, inobservada por aqueles a quem se dirige, cria ocasião para a repressão mais intensa, severa; de outra parte, a conivência institucional igualmente se manifesta, expressa como concessão com vistas ao atendimento de seus interesses, e, na defesa dos quais, a lei se converte em letra morta, mas somente quando os interesses dos donos do poder sofrem algum risco.
   Sob tal horizonte, circunscrito na transição da monarquia à república, com ênfase na chamada primeira fase republicana, merece destaque o fato de que desde a primeira constituição escrita em 1891 até a de 1937, decorreram quarenta e seis anos nos quais não é fácil discernir a Capoeira a serviço de um propósito que transcenda à sua própria existência, ou seja, como instrumento de luta organizada em contraponto à ordem excludente. No entanto, se pensada a prática da arte sob o vínculo com a dimensão religiosa, uma vez que, à semelhança das ordens especialmente na Bahia a servir de núcleos de resistência e acolhimento aos desvalidos, portanto elemento fundamental ao movimento abolicionista/emancipatório, a Capoeira pode ser vislumbrada como manifestação que simbolicamente expressava a presença das camadas excluídas no campo de batalha  que eram as ruas, significando afirmar que tal presença servia de incômodo aos guardiões da ordem vigente, aos donos dos meios de produção e detentores do poder político, aos quais caberia a adoção de medidas repressivas no plano institucional concreto, ou seja, utilização da força policial, bem como na dimensão jurídica, notadamente por se manifestar meio de coerção social dos mais simbolicamente poderosos haja vista a observância da legalidade corresponder a um valor inegociável.
     Depreende-se de tais observações, uma espécie de maleabilidade no universo de resistência da arte, uma vez que a mesma, existindo à margem do organismo social como uma espécie de corpo estranho e potencialmente maléfico, dialogava nas franjas do poder à medida que seu potencial para relativizar a ordem pública fora, em boa medida, cooptado por esse mesmo poder conforme a conveniência de ocasião, à semelhança do alistamento de escravos e vadios recrutados para a insana guerra contra o Paraguai sob a promessa de alforria aos primeiros, a qual, em muitos casos, jamais alcançou cumprimento.

Trecho de meu artigo e trabalho de conclusão do curso de história da Faculdade do Leste do Paraná.

Em algum lugar na Via Láctea,
Maurício Alves.
 

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