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Infância e Amizade em “Extraordinário"


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Este texto não contém spoiler


Desde cedo a tensão é componente permanente no campo das relações humanas; tal evidência constata-se especialmente na infância, acerca da qual vale destacar o quão grávidos de fantasias e sonhos somos, porém, esta fase não exclui os choques entre os indivíduos, uma vez que os vínculos de amizades que as crianças estabelecem não são necessariamente oriundos de simpatias ou identificações instantâneas.

Essa é uma etapa importante, na qual reside uma porção significativa do que nos definirá subjetivamente e as consequentes predileções, opções pela tolerância em nome do afeto ou antipatia duradoura, representando os primeiros sinais para elaboração de uma estética comportamental includente e ao mesmo tempo marcada por colisões.
Infância e amizade são elementos pivotais ao desenho da subjetividade humana, os quais refletem uma natureza complementar, cuja apreensão se revela, por exemplo, ao discernirmos que as extremidades de um elemento qualquer não se antagonizam necessariamente, pois, embora dispostos em sentidos contrários, revelam que a existência de ambos indica o equilíbrio vital que rege os entes sobre a terra.

Essa singela apreensão deriva, provavelmente, das lições igualmente simples que a natureza nos oferta, pois a diversidade de seres que compartilham espaço nesse pequeno planeta impõe equilíbrio na relação com o meio ambiente, manifestamente presente nas formas de obtenção de alimento, ocupação de áreas, estratégias para um adequado relacionamento com os diferentes, demonstrando o quão pedagógica pode ser a maneira como observamos a natureza a partir de seus mais diversificados reinos. 

Discorrer sobre a infância nos impõe a imediata sensação de um frescor para o qual não há analogia que defina precisamente o estado do ente humano que se encontra nessa fase, pois as oscilações no sentir são tão poderosamente dinâmicas, qjue a impressão que temos é a de que a alma da criança é habitada por uma enorme quantidade de entes com características tão diversas a ponto de incluir o super-herói e igualmente acolher aquele inócuo e sedutor vilão, em relação ao qual guardamos geralmente uma reserva de esperança em sua regeneração.    

Tais pulsões certamente só podem coincidir com a infância, na qual acolhimento e tensão são mediados pelas condições fornecidas na atmosfera de convivência, e esse tema está, de modo inspirador e delicado, demonstrado no filme Extraordinário, película que consagra exatamente os dois conteúdos, infância e amizade, como pavimentos à superação da rejeição e temor pelos diferentes.

A narrativa nos apresenta August "Auggie" Pullman, portador de uma deformidade no rosto a qual determina que seus pais, Isabel Pullman (Julia Roberts) e Nate Pullman (Owen Wilson) optem por educá-lo em casa, condição que, não obstante fundar-se na proteção e cuidado, inviabiliza a convivência com outras crianças. Quando Auggie expõe seu desejo de frequentar uma escola local, a apreensão de sua mãe não não foi capaz de demovê-lo da ideia, ao contrário, com um espírito vívido, puro e uma personalidade desconcertantemente carismática, aquele pequeno "milagre de gente" carregará o potencial necessário para vencer, com o poder do amor manifesto na capacidade espontânea de lidar com a perplexidade dos colegas, as animosidades que nascem no interior do medo. 

É forçoso reconhecer que o exemplo da obra ficcional em comento traduz a noção de que a infância, etapa em que mais nos dilatamos ao aprendizado, constitui o momento em que, através da experiência com o coletivo, a criança recompõe e ajusta seu próprio caminho, superando antagonismos e isso a partir de um olhar não contaminado pelas lentes do preconceito, condição que a torna capaz de compatibilizar os opostos, razão por que amizade e infância são univitelinamente gêmeas. Ou não é verdade que a menção a um grande amigo dificilmente não inclui alguém de nossa infância?

Essa percepção se apoderou de mim aos trinta e quatro anos, quando propus a meu sobrinho de cinco brincarmos de contar estorinhas. Ele não estava muito afim, queria brincar de monstro (claro que o monstro seria eu, e ele o super-herói), mas consegui dissuadi-lo ao inventar uma esdrúxula narrativa do encontro da sucuri ziguifrina com o tamanduá bandeiera - personagens concebidos naquela hora! Rsr!. Contei-lhe que ambas são espécies típicas do nosso Brasil; a cobra possuía um mortal abraço e o tamanduá o insólito hábito de comer formigas.

Certo dia, ao avistar Ziguifrina, o ingênuo tamanduá aproximou-se e a cumprimentou. A cobra muito astuta encaminhou-se para abraçá-lo, num gesto de aparente carinho. Ele consentiu, porém, percebeu que aquele abraço demorava e o oprimia muito, quando então sugeriu à sucuri que lhe permitisse beijá-la. Tendo-o muito próximo ao corpo, sabia ela que o inocente tamanduá jamais lhe escaparia, por isso resolveu aliviar-lhe um pouco a opressão consentindo o beijo. O que ela não sabia é que o "pequeno bandeira", como era conhecido, trazia à boca uma centena de formigas saúvas, que foram de pronto depositadas em suas entranhas, fazendo-a se contorcer a ponto de disparar em direção ao rio, desesperada para livrar-se do cardápio predileto do little bandeira.


Ora, não querendo dar trégua pois já percebia meu ouvinte entre bocejos e piscar de olhos sonolentos ao final da fábula, despachei uma segunda. Agora, tratava-se do encontro do ursinho coala e a mamãe canguru.


A mamãe canguru buscava ao pé de uma árvore algum alimento para ela e seu filhote. O coala, agora órfão, pois se desgarrara de sua mãe, elegera aquela árvore seu refúgio e fonte de nutrição. Lentamente o ursinho se dirigia a um galho, quando viu a mamãe canguru colhendo frutos. Isso o encheu de cólera, pois adotara aquela árvore como lar, cujos frutos eram - dizia ele – sua propriedade exclusiva, numa inarredável demonstração de convicção jurídica, que o compelia a uma espécie de exercício de cidadania animal.
Gritou alto:
- ei, não pegue os meus frutos!
A mamãe canguru respondeu:
- mas você nem os come. Não fazem parte de sua dieta. 

Nesse instante, o coala, exasperado pela emoção do embate despencou da árvore e veio pousar na bolsa da mamãe canguru, reunindo-se a seu filhote. Um pequeno bate-boca iniciara pois o bebê canguru não admitiu dividir o mesmo espaço com um estranho no ninho, mas, ao tomar conhecimento de que o coala era órfão, instaurou-se uma atmosfera de compaixão e o pequeno ursinho incorporou-se à sua nova família.

A essa altura, Vitor, meu sobrinho, já se rendia a meu lado tomado pelo sono, o que me levou a constatar que fui ouvinte e narrador, simultaneamente, de um delírio maravilhoso que só a infância e amizade dele poderiam provocar.

Essa experiência me levou a fortalecer a crença de que nossa alma pode, a despeito das tensões cotidianas, ser irrigada permanentemente pelas pulsões infantis, ou seja, as que revelam na inocência a produção de fugas criativas como no caso do pequeno tamanduá, bem como oxigenar a compaixão demonstrada na postura inclusiva da mamãe e bebê cangurus. 


Sei que podemos enxergar a infância - ao menos a lembrança dela - como o tempo em que os choques produziam alternativas para a comunhão; quando, por exemplo, dividíamos compulsoriamente um brinquedo com um primo que nos visitava aos finais de semana; nas disputas que conduzem todos à condição - ainda que alternando o primeiro lugar - de campeões, pois, no campo dos sonhos, das lindas viagens imaginativas somos, de fato. 


Agora, a amizade de meu pequeno Vitor - hoje um gigante de 14 anos... rsrsr!! - me faz robusto, com o coração cheio de fé de que um dia possa me tornar,  - ao menos para minhas três princesas Sophia, Izabel e Catharina -, assim como fui para ele, um inexcedível contador de historinhas. Rsrsr!!!

Por Maurício Alves.
P. S. Este texto resultou de um pedido da senhora Simone, seguidora do meu canal. 

Tenha acesso aos meus comentários em www.youtube.com/mauriciocinematico

@Questaodecinema
 

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