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O Nome da Rosa


Este Texto não contém Spoiler




Fé, Razão, Medo e seu Labirinto comum



O Nome da Rosa, obra cinematográfica produzida com base no livro homônimo de Humberto Eco, expõe um dos temas mais discutidos da humanidade, qual seja, o embate entre fé e razão. Seu roteiro nos indica a aspiração humana em ir além do que se revela na superfície dos dogmas institucionais, na sombra das narrativas oficiais e adornos de que se revestem os ritos, à medida que nos provoca ao enfrentamento do medo que nos impede de conhecer a verdade.

O filme se impõe pela densidade e profundidade de conteúdo, para o qual coopera significativamente o personagem Guilherme de Baskerville, interpretado por Sean Connery, o qual se revela um arauto da razão ao estabelecer premissas com base na lógica e princípios racionais necessários à elucidação dos acontecimentos. 

Os fatos misteriosos ocorrem num mosteiro beneditino dos Alpes marítimos da Itália, no séc. XIV, em 1327, o qual é apresentado como uma espécie de arquetipia do mundo, cujas vicissitudes humanas são manifestas sob o jugo da vigilância e controle que o medo clerical impõe. 

O personagem acima indicado, um frade franciscano, é designado pela Igreja a investigar uma série de mortes que misteriosamente ocorrem no interior da abadia, cujo vestígio resume-se a uma mancha azulada na língua dos cadáveres. 

Ressalte-se que Baskerville, enfrentando obstáculos que o obscurantismo medieval lhe impõe, visto a pouca transparência e mesmo animosidades do clero, caminha obstinadamente ao encontro da verdade, sob o manto do método analítico/indutivo, o qual perfaz o embrião do procedimento denominado inquérito, fator decisivo para correlacionar os indícios deixados na cena do “crime” com a majestosa biblioteca do claustro.

O frontal antagonismo ao franciscano resta personificado no monge místico guardião da biblioteca Jorge de Burgos, uma figura sinistra apresentada como a memória viva do local, e que nos remete ao personagem Tirésias, profeta grego que, em Édipo Rei, relativiza o saber quando este corresponde a um despropósito para quem o detém, ao afirmar "Como é terrível saber, quando o saber de nada serve a quem possui."
 
Eis o labiríntico cenário proposto pela obra, cujos componentes razão e fé estabelecem uma tensa interlocução atravessada pelo medo, uma vez que este último corresponde à ideia estratégica de manutenção do espírito servil, haja vista qualquer movimento, tendente à ruptura com o “status quo”, significar a emancipação de almas convenientemente dóceis e misticamente submissas.

O binômio medo e dominação compreende o fundamento sobre o qual significativo volume de regras “intransponíveis” são construídas, cujos conteúdos mantém intrínseca relação com o ocultamento da verdade. Em consonância, perseguir a verdade, conforme o agir do frade franciscano, exige alta dose de coragem, pois, questionar regras limitadoras nos coloca em rota de colisão com as fontes que as criou, e desse choque invariavelmente resulta a demonização daquele que ousa relativizar os dogmas.

Livre das amarras do medo, o espírito racional enfrenta as condições adversas determinadas pelo silêncio, um dos mais implacáveis obstáculos, o qual cede apenas ao clamor do pânico que se instala ante a manifestação pujante da natureza, condição expressa numa impactante cena em que relâmpagos e trovões aterradores se insurgem nos céus como aparente resposta definitiva às angústias dos beneditinos. A fenomenologia em tela propõe ao místico ambiente, uma delimitação da compreensão dos fatos, visto cooperar ao recrudescimento do desejo de ocultar-se os monges, nas abissais profundidades da ignorância.

Em síntese, o Nome da Rosa nos propõe, dentre inúmeras apreensões possíveis, uma reflexão sobre a coragem de romper as cadeias do medo para a contemplação da verdade, a qual se oculta sob o manto das regras e ritos institucionais que, por meio do discurso ideologicamente construído, impõe limitações em descobrir e enfrentar a realidade.


Por uma existência fundada na razão e fé serena,

 Maurício Alves.

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