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"Me diz Que sou Ridículo"

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Por volta das 19:00, nosso grupo de amigos se reuniu na praça, conforme fazíamos há anos, quando, em meio a temas diversos tratados com a leveza de ocasião, paqueras e brincadeiras típicas de nossa faixa-etária, fomos surpreendidos com a aproximação de uma viatura policial que, abrupta e agressivamente ocupara, em segundos, nosso local de encontro, nossa ágora, experiência marcada por dois momentos especialmente.

O primeiro diz respeito à brutalidade gratuita de um policial sobre um jovem, o qual lhe desferiu um tapa, cuja devastadora violência o impossibilitou permanecer de pé; o segundo, quando já havíamos nos postado com os braços ao alto e corpos contra as grades de um templo católico a fim de que a abordagem fosse realizada, meu irmão, num ato reflexivo, se apressou em retirar a carteira do bolso para, em mãos, facilitar a apresentação de seus documentos, momento em que fora atingido por um chute tão violento na nádega seguido de insultos e humilhações que a única reação possível foi permanecer imóvel.

A propósito, os representantes do aparelho repressivo estatal eram negros, cuja farda parecia imantá-los de uma inexorável e escusável iniquidade, instilada no bojo da convicção de que, ungidos pela cúria militar estatal, a barbárie perpetrada sobre a juventude preta consistia em ritual sagrado porquanto validados por uma espécie de estatuto dos capitães do mato.

O episódio acima mencionado ocorreu há 25 anos, no estigmatizado bairro Cosme de Farias, em Salvador, o qual, em que pese ostentar o nome de um dos mais nobres e legítimos representantes da sociedade soteropolitana, defensor da dignidade humana posto engajado com a defesa dos marginalizados pela política estatal excludente, mais se notabiliza, à semelhança dos demais sítios periféricos da capital baiana, pela violência que se impõe como companheira aparentemente indivorciável.

Abordagens da polícia nossa de cada dia eram frequentes, faziam parte de nosso cotidiano, e sempre acompanhadas de algum nível de violência: pontapés, tapas, socos e copiosos xingamentos bem como referência pejorativa aos nossos cabelos. O último dado, qual seja, a repressão que se pratica contra o povo negro em razão desse elemento tão característico (o cabelo), visto sua associação imediata ao que é “ruim”, “feio”, evidencia que, o desrespeito e intolerância com essa camada numericamente hegemônica de habitantes em nosso país, decorrem de elaborações simbólicas ainda muito poderosas, as quais, eivadas de sentimento perversamente discriminatório, se revelam como reação aos modos de expressão corporal do preto, notadamente aos de periferia, razão por que, qualquer manifestação estética que um negro ostente em dissonância com os padrões referendados pela elite opressora será, quando não explícita e violentamente vilipendiada, sutilmente ofendida.

Em 2 de fevereiro deste ano, um jovem negro do subúrbio em salvador, a par de inúmeras outras vítimas não contabilizadas posto não capturadas por câmeras de celular, fora covarde e humilhantemente achacado por um policial militar numa “abordagem”, cuja violência brutal chamou atenção, dentre outros detalhes, pela referência ao seu cabelo. O militar, antes de desferir socos em suas costas e um golpe que, malgrado ausentes estilo e apuro técnico, em capoeira se assemelha à “chapa” (ao “capitão do mato” e militar - pela violência empregada - indubitavelmente um golpe tão poderoso quanto um coice equestre), se apossou dos cabelos do rapaz e, de modo tosco e grotescamente agressivo, chacoalhou sua cabeça e, aos berros, questionou seu penteado/corte e o qualificou de “ladrão”.

“Pra mim você é ladrão”, frase dirigida ao garoto que, inutilmente, afirmara ser trabalhador, contraponto tímida e temerosamente manifesto que, flechado pelo ataque racista sucumbiu diante da violência, se calou perante a opressão, arrefeceu pelo temor da morte.

Inferiorizar é uma estratégia para legitimar o estigma e a criminalização, uma vez que, naturalizada a violência em razão do recorte racial, ao violentado resta submeter-se ao escárnio cruel para não sofrer a imputação de um crime ou mesmo assassinato pelo braço institucional.

Para além da cultura de opressão racista que enxerga a diversidade como ente perigosamente antagônico ao seu modelo arquetípico de sociedade, parece mesmo haver certa raiva invejosa pela ousadia criativamente expressa em corpos negros, destacadamente o cabelo, para o qual, a configuração encarapinhada ao fornecer a possibilidade de infinitas feições por meio de diferentes cortes, afronta a intolerância, relativiza os padrões vigentes de beleza, insulta o racismo.

Suka é o apelido de Carlos Lima, compositor da canção Ilê de Luz, cujo lançamento ocorrera quando eu tinha 15 anos incompletos, e a denúncia poética do racismo nessa letra é flagrante, ao lado de uma melodia que faz o coração acelerar de emoção, e inicia sob a seguinte afirmação:

Me diz que sou rídiculo,
Nos teus olhos sou mau visto,
Diz até tenho má indole
Mas no fundo Tu me achas bonito
Lindo!

Estereotipar o negro e enxergá-lo sob as lentes do preconceito; marcá-lo com o selo da maldade é o modus operandi dos que rejeitam reconhecer sua beleza ínsita, presente na autonomia de quem resiste à opressão com ousadia libertária.   

A abordagem policial orientada à vinculação da estética negra à criminalidade perfaz modalidade racista que violenta e mata, posto que os modos de expressão do povo negro subvertem a ordem hegemônica, relativizando-a e atuando não apenas de modo sutil, mas violentamente explícito e manifesto sob a negação do belo, da liberdade de expressão estética, e da própria vida.

Em algum lugar na Via Láctea,

Maurício.

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