Pular para o conteúdo principal

Memória e Armadilha Afetiva




É comum a memória de tempos passados carregar a credulidade de que os mesmos foram mais intensos, felizes e significativos que o presente, haja vista a prevalência do afeto nas narrativas, condição que coopera ao resgate do brilho e sensações antigas na experiência de rememorá-los. O discurso de que os dias de outrora encarnaram virtudes ausentes à atual quadra histórica parece não apenas indicar saudosismo em muitos de nós, mas, semelhantemente, uma importante tendência à negação de nossa responsabilidade à criação das condições para que os significados possam ser enxergados nos dias de hoje.

Lembrar o passado consiste num exercício de natureza fundamentalmente afetiva, no qual revisitamos sabores, sentimentos, sensações, dores e alegrias, pois é da natureza humana recorrer à memória de modo a produzir estímulo, compreensão e significado existencial.

Contudo, o hábito de desencadear tantos elementos guardados nos sótãos da mente a partir das lembranças - algumas obscurecidas pelo tempo outras vivas pela relevância que carregam - expõe, mesmo implicitamente, o impulso de hipervalorizarão do que se realizou, determinando a exigência de considerável grau de isenção à tarefa de investigar as conveniências que operam a compelir o ente humano a proceder de modo tão parcial nesse aspecto.

Não seria de todo estranho considerar que o enaltecimento do passado decorra, dentre outras razões, de uma sensação de impotência para interferir no presente, especialmente quando a apologia incondicional é o instrumento dos que margeiam o protagonismo em determinados domínios na existência, os quais não conseguem transcender ao anseio por prestígio e reconhecimento, os levando a crer que os dias de outrora sobrepujam em importância e significado o momento atual.

Se mostra oportuna a reflexão acerca da tendência de louvor (excessivo)ao  passado, sobretudo porque a história carrega, em sua matriz conceitual, o desafio de decodificá-la de modo a concebermos as sínteses das quais os significados são extraídos, do contrário, a mesma restaria reduzida à mera soma de fatos no interior dos quais abandonar-se-ia a essencial articulação entre seus aspectos difusamente expostos no marco da experiência humana.

Tal perspectiva sublinha o fato de que a memória está imantada por parcialidade, cuja condição só pode ser - ao menos - relativamente superada com a devida coragem para aceitarmos que a mesma, marcada por afeto, muitas vezes não represa nosso impulso exultante que, pela conveniência obscuramente emotiva, desconhece limites ao exagero.

O afeto repercute em nossas memórias nos compelindo a que descrevamos olímpicamente os feitos do passado, emulando uma espécie de vaidade nostálgica à medida que, em oposição diametral e substantiva medida, expõe nossos desencantos com o agora, exercício que sublinha a tendência que possuímos de ungir, com o óleo do exagero, narrativas que invocam o passado enquanto ao presente imputamos a culpa de não produzir a edificação na medida supostamente experimentada um dia.

Ora, a história e os significados que dela decorrem pertencem ao agir humano, razão por que não convém ao acaso assumir o primado de nossas ações, haja vista o mesmo consistir no encadeamento de uma série de eventos capazes tão somente de produzir oportunidades, cujo aproveitamento depende de nossas escolhas, significando afirmar que a recorrente afirmação de que o passado triunfa em conteúdo e significado sobre o presente, pode indicar uma desmobilizante frustração cuja origem está no conveniente refrigério que a parcial compreensão da realidade logrou estabelecer.
 

   

     
    


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Evangélicos e generalizações

        A generalização atribuída ao chamado campo religioso evangélico no Brasil, traduz um equívoco pontual e importante, à medida que sua feição difusa, diversa e em muitos aspectos caótica, oculta a expressão de dogmas - no interior de tal corrente - oriundos da ideologia neoliberal incrustados especialmente  nos modos de enxergar as desigualdades, as quais não resultariam - à luz da interpretação de suas lideranças mais expressivas midiaticamente - das condições de natureza histórica vincadamente marcadas pela prevalência de interesses da elite economicamente opressora, todavia, da passividade ou diligência dos crentes em face das "naturais" adversidades que desafiam a existência e, por consequência inescapável, a fé.     O maneira de discernir o tema da desigualdade por parte (incorro em deliberada generalização) dos evangélicos, importa no vínculo imediato que a inevitabilidade do sofrimento possui com o grau de credulidade nas promessas divinas, as quais, em que pes

Sonhos, significados, sentido

A frase O universo numa casca de Noz, cunhada pelo grande matemático e físico teórico Stephen Hawking, a qual intitula um de seus extraordinários livros, constitui indicativo de que o tamanho das coisas não abriga, necessariamente, relação de proporção com seus significados. A esse respeito, basta observarmos a natureza e as sutis apreensões que dela advêm, uma vez que, permitindo-se escutar com sensibilidade o canto dos pássaros, o farfalhar das folhas ou mesmo o impacto de uma queda d’água em seu pouso sobre as rochas, conceberemos uma peça musical inaudível aos que não se permitem sonhar.   Sonhos possuem o condão de nos fazer enxergar em diminutos elementos, grandes significados, os quais correspondem ao sentido de nossa existência e nos permitem aceitar o quão graciosa e repleta de poesia é a vida, cuja evidência resta comprovada quando, por exemplo, dominados pela espontaneidade lançamos pequenas pedras em direção a um rio ao dele nos aproximarmos.   Tal contexto me

CULTURA E CIDADANIA: UM ELO NECESSÁRIO

     O caldo revolucionário fermentado na Bahia no início do século XIX, fora imantado pela irresignação ao cativeiro bem como pelo componente religioso especialmente dos negros islamizados que aqui aportavam, condição a produzir significativo receio do governo, uma vez que o Haiti demonstrara, pouco tempo antes, extraordinário exemplo emancipatório através de uma revolução cujos ecos indicavam a necessidade de precauções quanto à gestão da condição negra no país.      Evidentemente que as elites brasileiras em nada refletiam a mais remota disposição em considerar uma efetiva emancipação do povo negro escravizado, uma vez que a economia do império dependia de sua mão de obra, significando afirmar, que qualquer reflexão acerca da escravidão, estaria circunscrita aos interesses de uma elite cuja razão de fundo a orientar seus passos apenas incluía a manutenção do  status quo .      O conteúdo básico a balizar a hegemônica opinião acerca das sublevações negras no período retro indicado, c