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A relevância do tempo para o Consumidor com escopo no Decreto 6.523

 

 Em consonância com a perspectiva de proteção enunciada pelo Código de Defesa do Consumidor, o qual dispõe, em seu art. 6º, VI acerca da garantia de “efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”, cuja função revela o caráter de verdadeiro instrumento de proteção ao exercício da cidadania, o Decreto 6.523, em seu art. 18, §2º, regulamenta o CDC no que respeita a fixação de normas ao Serviço de Atendimento ao Cidadão, ao afirmar que:
 

"O SAC receberá e processará imediatamente o pedido de cancelamento de serviço feito pelo consumidor.


§ 2o Os efeitos do cancelamento serão imediatos à solicitação do consumidor, ainda que o seu processamento técnico necessite de prazo, e independe de seu adimplemento contratual".


Este dispositivo constitui elemento fundamental de proteção ao consumidor, uma vez que sua vigência trás inegável garantia legal, de modo a amparar o ente mais vulnerável nas relações de consumo num dos mais significativos pontos a gerar imensos problemas, notadamente aquele em que o cidadão/consumidor depende de efetiva diligência do fornecedor à consolidação do cancelamento da relação jurídica firmada.


O marco temporal que se insere no âmbito das alegações de quem se vale de um serviço, seja na seara administrativa e/ou sobretudo em juízo, compreende dado essencial à prova dos fatos narrados, mormente acerca da tempestividade de seu requerimento de dissolução da relação com o fornecedor, ocasião em que não raro ocorrem argumentos quanto à necessidade de mais dilatado tempo para que a empresa operacionalize o desvínculo, razão por que a natureza consumerista da relação invariavelmente determinará que a prestação do serviço dependa quase exclusivamente do fornecedor, condição que impõe afirmação do status de maior vulnerabilidade do consumidor.


O caput do art. 18 do Decreto supra mencionado destaca inexistir outra interpretação senão a ideia de imediaticidade, ou seja, para fins de cancelamento requerido pelo consumidor, o acolhimento do pedido deve concretamente repercutir no processamento interno para desconstituição do vínculo jurídico, condição reforçada pelo §2º do referido art. à medida que destaca que as implicações decorrentes desse ato unilateral de vontade serão imediatas a despeito de providências técnicas ulteriores, bem como não dependerá de "adimplemento contratual", significando dizer que eventual mora do consumidor junto ao fornecedor não possui o condão de obstar o exercício da vontade de quem manifesta desejo de promover o "cancelamento de serviço".


Sob tal perspectiva, cumpre gizar que os acordos/contratos são ultrassubjetivos, posto que seus reflexos impactam, muitas vezes, uma coletividade de indivíduos além dos envolvidos diretamente nas avenças, razão por que a norma trazida ao bojo da reflexão que aqui se exerce, inscreve um conceito caro à ciência jurídica, qual seja, a boa-fé objetiva, a qual permeia a seara consumerista de modo a imantá-la com o espraiamento da lealdade, confiança e probidade, sub-princípios derivados da concepção de que objetivamente qualquer relação jurídica nasce da expectativa de que as contrapartes se comportarão de modo leal, probo e sob o esteio da confiabilidade ao cumprimento de suas respectivas obrigações.


Nesta rota, convém sublinhar, que o advento da norma supra indicada alveja o elemento que inegavelmente desiguala o consumidor, qual seja, aguardar, de modo passivo, que o fornecedor procedimentalize os atos ao fim da relação jurídica, ocasião em que não é, infelizmente, tão incomum o surgimento de supostas pendências, cujo propósito protelatório visa, em muitos casos, impor ao cliente que deseja se desligar, a manutenção forçada do vínculo.


Em consonância com a perspectiva retro esboçada, em decorrência da qual os indivíduos terminam por judicializar os danos advindos da eterna dilação de prazo para cancelamentos empreendidos por clientes, demora essa resultante de conduta  unilateral por parte de certas empresas, cumpre destaque a outro dispositivo legal inscrito no CDC, cuja natureza guarda correspondência com o tema disciplinado pelo Decreto 6.523 em tópico sobre o qual ora nos ocupamos (art. 18, §2º), o qual confere, ao marco temporal, semelhante relevância, tendo em mira o equilíbrio  na relação consumerista.


A expressiva semelhança entre a disposição do aludido Decreto em tópico acima mencionado com o art. 49 do CDC reside justamente na ideia de que o tempo assume a primazia ao caráter constitutivo de um direito, significando dizer que o direito ao arrependimento insculpido no art. retro destacado (art. 49, CDC) traduz, em certa medida, um empoderamento ao consumidor haja vista a desistência da compra, uma vez o contrato de consumo tenha sido concluído remotamente, ou seja, fora do estabelecimento comercial (internet, telefone), no prazo de sete (7) dias, cujo marco para tal exercício compreende a data do recebimento do produto ou da assinatura do contrato, consubstancia o chamado "período de reflexão".


O "período de reflexão" pertence à mesma tábua axiológica que a prerrogativa prevista no Decreto 6.523, uma vez que o direito à desistência nas condições retro indicadas está compreendido no lapso de sete dias, ou seja, enquanto o aludido Decreto propõe os efeitos imediatos de um ato unilateral de vontade praticado pelo consumidor, o primeiro cenário amplia o prazo para o exercício da reflexão uma vez que o mesmo, tomado à margem de certas característica como a compra online, a qual normalmente está marcada pela inorgânica e artificial relação entre fornecedores e clientes, há claramente entendimento de que em muito a autonomia da vontade do consumidor resta mitigada, haja vista a suposta liberdade no ato da compra do produto e/ou serviço escamotear o real paradigma a que estamos submetidos, marcado pela conversão dos consumidores em dados inscritos em frias telas computacionais, como resultado de nossos perfis tratados por algoritmos a nos pôr em alça de mira das corporações que dominam o cyber espaço.


Se o direito ao cancelamento imediato de serviços requeridos pelo consumidor aduz a ideia de sua proteção, impende sublinhar que tal condição resta erigida sobre o fundamento da boa-fé objetiva, pois, a mesma servirá como vedação ao arbítrio das empresas notadamente nesse aspecto, condição para cuja concretização depende quase exclusivamente da pessoa jurídica, determinando o embate entre duas forças contrapostas, quais sejam: o exercício da liberdade de escolha do consumidor, e a tessitura ética que deve estar presente na gestão dos atos a culminar com a supressão de um pedido (cancelamento) e consequente dissolução de uma relação jurídico-consumerista.

 

Maurício Alves,

operador do direito em algum Lugar da Via Láctea.


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