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A dor e o tempo

O tempo leva toda dor...

Há poucos dias despertei pela manhã e um estranho pensamento sobreveio à mente, o qual, não pareceria capaz de produzir, em consequência, alguma reflexão. Em que pese a aparente ausência de conexão com algum dado da realidade a partir do qual se pudesse indicar o mais remoto proveito, a dor, elemento central daquela intuição se mostrou, por si só, o objeto potencialmente apto a desencadear alguma relevância para que decidisse compartilhar as impressões dessa experiência tão incomum. 

Após uma noite de sono intermitente, ao amanhecer, acordei e logo empreendi movimentos de alongamento para sair do colchão, momento em que concebi, num átimo de tempo e à medida que a mistura de um certo desconforto corporal e prazer se apoderavam de mim, uma imagem de pregos sendo cravados em meu corpo, e, de uma maneira espontânea, considerei em que termos a dor física se impõe, e quais aprendizados teríamos se transpuséssemos as condições de tal processo a uma consideração mais ampla.

Imaginei, enquanto me erguia do lugar onde adormeci, o exato momento em que  pregos penetravam meu corpo bem como considerava o fluir do ínfimo lapso de tempo em que a mensagem de agressão ao organismo era enviada ao cérebro, condição que me levou a notar que nossas reações à dor não ocorrem de modo absolutamente imediato, tendo em vista todo movimento reativo demandar alguma temporalidade para sua concretização.

A essa altura, convencido de que dificilmente me levantaria naquele momento, visto que a cada resgate da imagem dos pregos mais estimulado me sentia a pensar sobre as condições que regem todo processo de dor, a mente indicava pistas em direção às quais me dirigia a fim de extrair alguma compreensão significativa daquele exercício.

Provavelmente, aquele recurso a suscitar reflexão tão espontânea compreenda, no bojo dos limites que nos individualiza, o único possível ao desencadeamento de um repertório de metáforas a brotar como ruas nas quais adentrava em meio a obscuridade que dominava os cenários; no entanto, era justamente o componente obscuro a dificultar meu discernimento que apontava ao imprescindível entendimento preliminar de que refletir sobre a dor é um exercício que exige enxergar sob o véu de incertezas.

A transposição do processo de dor que se impõe fisicamente ao ambiente de nosso sofrimento existencial, de algum modo revela que a violência dos fatos, que sobrevém de maneira implacável e para os quais o coração nem sempre assimila serena e equilibradamente, nos permite apreender semelhanças em ambas as realidades, qual seja, a existência de um período entre o evento e a consequente dor, significando ao menos considerar que as repercussões dos fatos embora tendam a se manifestar em medida correspondente, nem sempre assim se realizam necessariamente na prática, e, captar algum aspecto inerente ao sofrimento existencial, no qual o tempo ocupa a razão de fundo da reflexão, certamente nos sugere um exercício interessante.

Hiperdimensionar a dor, em conformidade com as considerações precedentes, reflete nossa frequente resistência ao que nos retira do lugar de conforto, razão por que, em muitos casos, o fator de incidência a desencadear nossas dores e em consonância com a imagem dos pregos, se concretiza como sinais de invasão direta das nossas trincheiras emocionais, e, a partir de tal incidência, surge um lapso temporal até que se atinja o ponto de assimilação.

O modo como reagimos aos açoites da vida parece corresponder à capacidade de nos anteciparmos aos sinais que materializam os fatores de incidência do sofrimento; e aquele tempo entre a concretização de tais ocorrências e a assimilação da mesma - o que no campo fático e emocional equivaleria à consumação -, talvez, em algum nível, nos permita equacionar a confusão frequente que se manifesta como hiperdimensionamento dos problemas haja vista a desproporcional reação com que somos afetados.

Instrumentalizar-se ao enfrentamento das dores, à luz do quanto exposto acima, exige incorporá-las ao fator tempo, sobretudo quando evidenciada a inevitabilidade das experiências que nos ferem, e, sob tal condição, essa variável (tempo) igualmente impõe que ampliemos o olhar sobre os múltiplos aspectos que a caracterizam, notadamente as mudanças de percepções que se incorporam ao nosso modo de enxergar a existência nas diversas fases que marcam nossa caminhada.

No decurso de tal reflexão, compreendi ao menos que todas as dores, mesmo aquelas que se impõem de modo surpreendente, são precedidas de algum tempo a que respondamos em grau de correspondência com a sua intensidade, porém, sob o lastro do equilíbrio, ou, repercutamos em medida sobremodo distante das reais implicações que os fatos produzem.

No entanto, a despeito do caráter de nossas reações, o tempo - desde que não permaneçamos cativos do passado -, seja na perspectiva inicial dessa singela reflexão, marcada pela apreensão de que há, para todo episódio na vida, um lapso que deveríamos aproveitar como oportunidade à melhor assimilação das experiências que nos assolam, perfaz elemento fundamental à maturidade, a qual deveria corresponder à consequência básica em todo o processo existencial humano.

Ao final de tais observações, no bojo das quais as dores corporais foram se dissipando  paulatinamente, entendi que era tempo de levantar. E viver.

Em algum lugar da Via Láctea,
Maurício C.Alves.


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