Pular para o conteúdo principal

INTERVENÇÃO MÍNIMA E RESPOSTA ESTATAL

                 


        O direito penal constitui um ramo da ciência jurídica cuja marca fundamental, corresponde à noção de que uma de suas principais características reside no fato (ou ideal) de que sua atuação opera a partir da afronta aos bens jurídicos considerados mais relevantes à esfera social, razão por que, outras dimensões do direito estariam aptas à proteção de certos bens, os quais, sofreriam adequado escrutínio de áreas como a cível, tributária, administrativa, por exemplo, tendo em vista a severidade de que se reveste aquele.

 

A centralidade do direito penal, a despeito da ideia difusa que alcança aparentemente a opinião majoritária dos indivíduos, possui, na base de sua concepção contemporânea, o princípio da intervenção mínima como supedâneo à ideia de que, em razão do direito penal disciplinar a perda da liberdade (ou seja: a prisão como pena por excelência), incide a exigência de que o mesmo se ocupe dos bens jurídicos destacadamente mais relevantes, tais como liberdade, patrimônio, integridade física e sexual por exemplo, condição atrelada ao reconhecimento de que seria pouco racional o Estado tangenciar, por flagrante desproporção, bens jurídicos que se desigualam ao seu arsenal.

 

Sob tal perspectiva, são decorrentes do princípio da intervenção mínima a subsidiariedade e a fragmentariedade, os quais indicam, com maior contundência, o caráter de ultima ratio atribuído ao direito penal, condição a sublinhar, por inferência inescapável, a intrínseca relação de tais elementos com a ideia de intervenção mínima - em que pese eventual perplexidade advinda de uma espontânea expectativa de que o selo do penalismo restaria encrustado na integralidade do domínio jurídico.

 

O que se pretende realçar nas linhas ora postas à análise do leitor deste artigo, é a destacada projeção conferida ao princípio da intervenção mínima no campo do direito penal, condição que desperta desde impressões relativas a um suposto afrouxamento da punibilidade conforme pensamento vinculado às correntes de matriz conservadora, bem como um imperativo, cujo pendor progressista identifica naquele princípio a prevalência da perspectiva de um direito penal mínimo, corolário da dignidade humana.


          Ocorre que, a despeito do debate a sublinhar o antagonismo relativo ao tema, o direito penal (ao menos do ponto de vista formal) incorporou a subsidiariedade e a fragmentariedade a fim de imantar-se de uma feição minimalista, significando afirmar que para tal dimensão jurídica importarão os bens jurídicos os quais outras áreas do direito não possam, pelo relevo que incorporam, discipliná-los material e processualmente, bem como lidar, no domínio de sua atuação, com aqueles notadamente mais expressivos.

 

          Em síntese, ao direito penal cumpre orientar-se pela ideia de que sua atuação é subsidiária, ou seja, ocupar-se-á de certos bens quando outros ramos da ciência jurídica não forem capazes de dar adequado tratamento ao tema; por outro lado, ao direito penal cumpre orientar-se pelo caráter fragmentário de que se tem revestido, tendo em vista os bens jurídicos eleitos mais relevantes à existência humana, indicar-lhe a exigência de disciplinamento, orientando-o ao manejo de seus dispositivos à devida resposta estatal.

 

          Nessa rota, distribuir justiça tem sido um jargão amplamente usado na doutrina e jurisprudência pátrias, o qual compreende a resposta jurisdicional às demandas dos indivíduos que batem as portas do poder judiciário, porém, distribuição de justiça constitui frase a acionar gatilhos na subjetividade da cidadania brasileira, que não são inteiramente apreendidos pela perspectiva institucional, uma vez que a injustiça campeia em solo pátrio à semelhança da virulência de patógenos a enfestar vastas coletividades, condição em que o non liquet, ou seja, a inaceitabilidade de inércia do judiciário consubstanciada no imperativo de que a este poder da república cabe responder aos cidadãos por meio de suas decisões, se manifeste implicitamente haja vista sentenças produzidas sem o balizamento da razoabilidade e proporcionalidade.

 

                  Sob tal horizonte, convém atentar que o princípio acima mencionado (non liquet), ou seja, a não resposta estatal através do judiciário, não se manifesta apenas em demandas judiciais que aguardam conclusas para decisão há anos, mas, igualmente, em fundamentações que, em razão de abusivas exigências probatórias e excessivo apego à letra da lei, se convertem não apenas em ausência de resposta estatal, mas, em elemento de opressão a desencadear um desestímulo à procura do poder judiciário como terceiro desinteressado conforme aprende-se em períodos iniciais do curso de direito.

 

          Na esteira de tais apreensões, e em que pese remota a relação com os princípios da subsidiariedade e fragmentariedade, impende considerar que a não resposta estatal, concebida na amplitude que abarca desde a resposta insuficiente à ausência de qualquer manifestação decisória resulta, à cidadania brasileira, em descredibiliade das instituições, condição a se observar, igualmente, se os princípios retro destacados (subsidiariedade e fragmentariedade) não fossem minimamente observados no trato legislativo da matéria penal, ou seja, na criação das leis bem como na aplicação das mesmas pela magistratura.

 

          Por inferência, convém observar, que a ideia de intervenção penal mínima, consubstanciada em seu lógico desdobramento subsidiário e fragmentário, revela que se o mesmo não se ocupasse dos bens jurídicos que mais importam à sociedade, bem como não abarcasse aqueles resultantes da inaptidão de outros ramos, estaria essa mesma sociedade, de certo modo, diante da ausência de resposta do Estado às suas demandas, haja vista a desproporcionalidade e ausência de razoabilidade presentes nas decisões do judiciário, e, semelhantemente, no trabalho do legislativo ao tipificar as condutas, condição na qual a injustiça seria praticamente a regra.

                   

          No seio da sociedade repercute um debate acerca do qual a comunidade jurídica infelizmente parece não demonstrar habilidade para, de modo claro, informá-la adequadamente, tendo em vista a larga linha que divisa o universo jurídico/academicista das pessoas cuja existência está fora do espectro do direito, permitindo que tal mediação se realize a partir de interlocutores passionais e descomprometidos com o aprofundamento de uma discussão relativa à mais severa dimensão jurídica, a qual, acaba por permear a vida dos brasileiros sob o filtro de programas “jornalísticos” de apelo popular, muitos dos quais reforçadores de estereótipos, condição para a qual qualquer tentativa de empreender lucidez e clareza quanto ao tema, soará como conivência delituosa infelizmente.

 

Maurício C. Alves.

         

         

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Evangélicos e generalizações

        A generalização atribuída ao chamado campo religioso evangélico no Brasil, traduz um equívoco pontual e importante, à medida que sua feição difusa, diversa e em muitos aspectos caótica, oculta a expressão de dogmas - no interior de tal corrente - oriundos da ideologia neoliberal incrustados especialmente  nos modos de enxergar as desigualdades, as quais não resultariam - à luz da interpretação de suas lideranças mais expressivas midiaticamente - das condições de natureza histórica vincadamente marcadas pela prevalência de interesses da elite economicamente opressora, todavia, da passividade ou diligência dos crentes em face das "naturais" adversidades que desafiam a existência e, por consequência inescapável, a fé.     O maneira de discernir o tema da desigualdade por parte (incorro em deliberada generalização) dos evangélicos, importa no vínculo imediato que a inevitabilidade do sofrimento possui com o grau de credulidade nas promessas divinas, as quais, em que pes

Sonhos, significados, sentido

A frase O universo numa casca de Noz, cunhada pelo grande matemático e físico teórico Stephen Hawking, a qual intitula um de seus extraordinários livros, constitui indicativo de que o tamanho das coisas não abriga, necessariamente, relação de proporção com seus significados. A esse respeito, basta observarmos a natureza e as sutis apreensões que dela advêm, uma vez que, permitindo-se escutar com sensibilidade o canto dos pássaros, o farfalhar das folhas ou mesmo o impacto de uma queda d’água em seu pouso sobre as rochas, conceberemos uma peça musical inaudível aos que não se permitem sonhar.   Sonhos possuem o condão de nos fazer enxergar em diminutos elementos, grandes significados, os quais correspondem ao sentido de nossa existência e nos permitem aceitar o quão graciosa e repleta de poesia é a vida, cuja evidência resta comprovada quando, por exemplo, dominados pela espontaneidade lançamos pequenas pedras em direção a um rio ao dele nos aproximarmos.   Tal contexto me

CULTURA E CIDADANIA: UM ELO NECESSÁRIO

     O caldo revolucionário fermentado na Bahia no início do século XIX, fora imantado pela irresignação ao cativeiro bem como pelo componente religioso especialmente dos negros islamizados que aqui aportavam, condição a produzir significativo receio do governo, uma vez que o Haiti demonstrara, pouco tempo antes, extraordinário exemplo emancipatório através de uma revolução cujos ecos indicavam a necessidade de precauções quanto à gestão da condição negra no país.      Evidentemente que as elites brasileiras em nada refletiam a mais remota disposição em considerar uma efetiva emancipação do povo negro escravizado, uma vez que a economia do império dependia de sua mão de obra, significando afirmar, que qualquer reflexão acerca da escravidão, estaria circunscrita aos interesses de uma elite cuja razão de fundo a orientar seus passos apenas incluía a manutenção do  status quo .      O conteúdo básico a balizar a hegemônica opinião acerca das sublevações negras no período retro indicado, c