Na esteira das
mobilizações políticas que se tem realizado no último decênio no Brasil, a
constatação de que a história se repete como farsa não pareceria inverossímil
ao mais antagônico marxista, uma vez que, os elementos simbólicos, instilados
na consciência coletiva de modo a consubstanciar e obter adesão a discursos de
cunho eminentemente conservador reservam, como dados da realidade social
inquestionáveis, valores de natureza familiar e tradicional notadamente em
contraposição aos intitulados “desvios” comportamentais que aviltam a ordem
“natural” de existência fruto de suposto consenso na sociedade brasileira.
A correlação entre pauta moral e dimensão
política resta inegável, uma vez que os movimentos de setores da sociedade que
se insurgiram por exemplo nos anos 1960, de natureza contestatória e em face de
um inimigo comum designado comunismo, é reeditado em pleno século XXI num
processo sofisticadamente diversionista, no bojo do qual, o apelo aos valores
da família tradicional é corolário de um projeto político que, incorporando a
ferocidade de um nacionalismo fastiscizante, centra significativamente sua
munição no domínio educacional, especialmente na repressão aos professores sob
o argumento de defesa dos valores aviltados pela “praga” da influência
comunista.
Na linha de tal entendimento, é forçoso
refletir sobre o papel midiático num processo de construção de convulsividade
social, no qual a ideia de capturar e repercutir a pauta de constestação
política que tem em 2013 seu momento de ativação, nada mais é que “uma tese
Baudrillardiana de que toda a sociedade já gravita em torno das mídias como a
única forma de produção de sentido possível, nem que seja como simulação”
(FERREIRA, pág.23, 2020).
A apropriação e encaixe de movimentos de
rua “no roteiro de simulação do Poder e da Política”, compreende aspecto no
elenco de estratégias de modulação comportamental de que se vale a imprensa,
mormente quando a viabilidade de produção de crises parece avizinhar-se,
condição que evolui de modo consistente, sobretudo quando no período acima
mencionado (2013-2014) a TV Globo, após a superação da perplexidade inicial com
as passeatas que transitaram dos protestos contra a tarifa do transporte
público em São Paulo para o sequestro do movimento por ONGs, que surgiram da
noite para o dia vociferando “Não é pelos $0,20 centavos!”, conduziu,
sofisticadamente, como um roteiro de novela, as manifestações em cujo processo
o país ainda se encontra mergulhado.
No vácuo de uma crise cujos setores
reacionários demonstram enorme interesse em sua manutenção, haja vista o
ambiente de colapso perfazer o cenário ideal para toda a sorte de proposituras
ideologicamente sedimentadas, a estratégia de interferência moralista se
insurge no seio da educação, com vistas à preponderância de concepções
absolutamente superadas conforme constata-se no famigerado PL 7180/14 objeto de
parecer da chamada Comissão Escola sem Partido, o qual, de acordo com sua
justificação, se faz “necessário e urgente adotar medidas eficazes
para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas e a
usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que
esteja de acordo com suas próprias convicções”.
Por relevante, merece transcrição trecho da
justificação do PL.
Vejamos.
É
fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de
suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a
determinadas correntes políticas e ideológicas, bem como para fazer com que
eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral
sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou
responsáveis. (PROJETO DE LEI Nº DE 2019 Institui o “Programa Escola sem
Partido”).
Preambularmente, convém realçar que a
afirmação de notoriedade quanto à suposta doutrinação docente e de “autores de
livros didáticos” a empreender cooptação de estudantes no domínio da conduta
“moral sexual” nos soa esquizóide, à medida que apenas reflete uma disposição
em produzir uma sensação de colapso moral no ambiente escolar, razão pela qual,
impende destaque ao fato de que a relatora do malfadado PL, atual presidente da
comissão de constituição de justiça da Câmara dos Deputados, deputada Bia Kicis,
possuir vínculo intenso com movimentos da mídia alternativa de feição
conservadora. Convém afirmar que inexiste problema quanto a ser conservador, no
entanto, tal perfil, à luz da explicita disposição da letra legal que se
pretende inscrever no ordenamento jurídico, generaliza uma conduta no mínimo
questionável, tendo em vista a ausência de qualquer demonstração fática ou probatória,
de natureza documental sólida a amparar a tese da vigência de tamanha
ingerência docente de modo a suplantar o protagonismo da família no bojo da
educação moral dos estudantes.
A
deletéria iniciativa expõe, de modo flagrante, uma espécie de barreira
sanitária no sentido de indicar, aprioristicamente, suposto risco docente,
conforme tópico intitulado dos Dos deveres do professor infra indicado:
DEVERES
DO PROFESSOR 1 – O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos
para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências
ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias. 2 – O Professor não
favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas
convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas. 3 –
O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará
seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas. 4 – Ao
tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, o professor
apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e
seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas
concorrentes a respeito da matéria. 5 – O Professor respeitará o direito dos
pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que
esteja de acordo com suas próprias convicções. 6 – O Professor não permitirá
que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de
estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula (PROJETO DE LEI Nº DE 2019
Institui o “Programa Escola sem Partido”).
Em
complemento, o trecho supracitado expõe, de modo incontornável, o imbricamento
das dimensões política e moral uma vez que, dirigida e inescapavelmente
entremeados, os dados de natureza moral e político-ideológicos se articulam de
modo a demonstrar que a razão de fundo a nortear a iniciativa legislativa,
constitui deliberada intenção constrangedora, haja vista a imposição de um
caráter de controle e vigilância por ato
omissivo (não facere), paradigma que não se encontra sequer no diploma
penal brasileiro, visto que, a esse ramo jurídico não cabe determinar o ato
comissivo dos agentes, e, sim, a lógica consequencial para todo agir tendente a
ferir a norma jurídica.
Referências
FERREIRA, Wilson. Bombas
semióticas na guerra híbrida. 1ª ed. São Paulo, 2020.
Portal da Câmera dos deputados, Acesso em 05.06.2022 às 21:00, Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br)
Maurício C. Alves,
em algum lugar desta distopia chamada Brasil.
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