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QUINTAIS DA ALMA

    A alma era atraída para estar próxima a um pedaço de natureza, em cujo verde, sinais de vida brotavam bela e vigorosamente; canções silvestres emanavam do peito de pássaros que das árvores pareciam comunicar a beleza como resultado da interconexão dos elementos, expressos na umidade das folhas, no cheiro a emanar da terra, na mistura de vegetais que arrebentam da superfície, na diversidade da fauna que no ar flutua altaneira e em terra rasteja, caminha e se funde ao todo universal.
     
    Convocado àquele eco-simpósio, Heitor dialoga com os artífices e regentes do ambiente, sob a mediação do predominante verde e marrom - este último, cujo tom coadjuva contrastante ao lado de um aparente silêncio -  que se rompe por meio de emanações ruidosamente discretas,  cooperando para que os sentidos se expandam.
    
É curioso nos sentirmos deslocados em ambientes outrora assemelhados ao ventre materno, nos quais, sob renovada perspectiva, nos tornamos apenas hóspedes em razão da ausência de significado que um dia nos conferiu sentido ao desejo de ali fazer morada. 
 
    Há outros lugares que ocupam de tal modo a centralidade de nossos mais expressivos sentimentos, que a mera lembrança nos impacta irresistivelmente, convencendo-nos de que tal lócus se inseriu tão profundamente nas entranhas de nossa sensibilidade, a ponto de tornar-se latifúndio exclusivo da memória.
   
    O homem, ao acordar de um sono intermitente, marcado pelo cruzamento de sonhos perturbadores, no bojo dos quais elementos de realidade se confundiam com desejos "inalcançáveis" e guardados no mais profundo da alma, magneticamente fora compelido àquele quintal.
  
    Magazine numa mão e na outra sua Nikon N90 e tendo a natureza em alça de mira, os elementos não se exibiam necessariamente sob a forma de bambuzais, coqueiros, mangueiras e demais nomenclaturas designadas pela biologia, e sim, como dados combinados que, em seu conjunto, manifestam  esplendor que fascina e acossa o olhar de alguém para quem a fotografia não é apenas arte mas um meio à catarse.

    A extremidade das folhas, a simetria das linhas inscritas no caule das árvores, a pequena casa do "João de barro" e até mesmo conteúdos fruto da intervenção humana como cercas e quiosques, são incorporados ao olhar de Heitor, formando um arcabouço a ser redefinido pela sensibilidade expressa na observação e captura de imagens.
  
    A fotografia era seu subterfúgio favorito, pois nela residia a possibilidade de filtrar o que lhe cercava de maneira particular e criativa. O mundo, para aquele leitor da existência era, essencialmente, a edificação de um sistema complexo de ideias resultante de sua obsessão em olhar, esquadrinhar, descobrir, através de uma lente fotográfica, mistérios contidos e revelados pela definição da mais conveniente profundidade de campo, enquadramento, abertura e velocidade, exercício resultante de incomum determinação para escapar do óbvio.
  
    Pisar aquele solo e encontrar uma natureza exuberante em seu entorno, quase intocada, compreende uma oportunidade para lições fundamentais acerca do quão especiais a sensibilidade nos torna, contribuindo à superação da ideia de que os elementos postos à apreciação dos olhos seriam conteúdos situados fora do ente humano.
   
    A beleza está dentro de nós, significando afirmar, que enxergá-la com os olhos da carne é apenas a manifestação do ambiente exterior, ou seja, o que nosso olhar capta e renova sob variadas nuances. 
 
Esse renovo que nasce da sensível maneira de apreender o que habita nosso entorno, à luz do discernimento daquele homem encantado com os significados que imantam as imagens coladas à sua retina, constitui sua sólida e inequívoca condição existencial, qual seja, extrair dos elementos  poesia e significados que são a mais eloquente evidência da beleza essencial.
   
    Em que pese não ser alguém comprometido com ritos ou hábitos reiterados, os quais costumam indicar o preâmbulo de alguma atividade humana, com a câmera nas mãos, o homem, inconscientemente, costumava erguer os olhos ao céu e descer seu olhar às extremidades das árvores, nas quais captura o movimento das folhas, o pousar de algum pássaro que, em movimentos curtos e frenéticos, saudava a vida com seu peculiar balé.
   
    Aquele único hábito que antecedia os disparos em sua câmera, de algum modo o conectava a algo profundo, a partir do qual as imagens refletiam sua alma pois resultavam de certa introspecção.
   
    À semelhança de Heráclito, filósofo pré-socrático, cuja convicção acerca da impossibilidade de se banhar no mesmo rio mais de uma vez restava fundamentada na ideia de inexistência das mesmas águas, Heitor mergulhava na iconografia daquele pedaço de floresta atlântica emoldurando seu quintal, sob o entendimento de que não é aceitável, em matéria fotográfica, reproduzir uma mesma percepção sobre a existência, notadamente quando presentes elementos da natureza, para os quais a mutabilidade é condição inescapável.
   
    Mas isso não era tudo.

    Havia naquela pessoa uma vocação subversiva, uma vez que se recusava aceitar a definição - reducionista a seu juízo - de observador ou mero captador de imagens, uma vez sua condição mais se aproximar de um perseguidor de essências. Sua sensibilidade e rara capacidade de inversão de olhar era curiosamente perspicaz, à medida que considerava de tal modo superior a inteligência da natureza que se inseria naquele cenário como um ente observado, ou seja, alguém cujo sentir dos animais e demais elementos o transformava radicalmente de ser humano, num objeto organicamente estranho e inacabado, submetido à régua daquele cosmo contraditório porquanto aparentemente indiferente e generosamente acolhedor.
  
    Mira uma folha em cuja imagem de fundo compartilham espaço lagartas, gravetos e o mato que se expande colado a uma parede de tijolos, circunscrita aos limites de captura de sua lente. Aos poucos são intensificados os discursos em forma de sons variados, diferentes tons luminosos que repousam na mata em forma de luz solar que gradualmente se acentua, complementando como ato de dádiva, a dinâmica vital de mudança que inevitavelmente se impõe à existência.  
    
    Sabedoria e entendimento eram extraídos do sol, do frescor inscrito na umidade das árvores, das melodias propostas por sapos, cigarras, aves e toda sorte de ruídos projetados a partir daquela complexa matrix, lugar em que a noção de conforto nenhuma correspondência mantinha com a cama da qual despertou o homem, que, após alguns segundos, percebeu que o breve mergulho naquela dimensão pacificada que habita o mais íntimo de seu incontido desejo de ocupar lugar no mundo, lhe mostrou que as condições para alcançar a paz estão sempre presentes na capacidade de olhar com a alma.
              
       
     
   Em algum lugar da Via Láctea,
 
Maurício C. Alves.        
  
          
   

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