Um trecho entre o trabalho e o metrô. Uma caminhada com obstáculos intangíveis que, embora não exponha Apolo a tropeços literais, o torna altamente vulnerável em razão dos pensamentos difusamente distribuídos em sua mente. Aquele percurso breve e contraditoriamente eterno, dominado por prédios e toda sorte de concreto o anima não apenas pelo rito mobilizante de retorno a casa, mas, sobretudo, pela experiência de respirar o ar fora do confinamento laboral, por apreender, dos olhares estranhos, as angústias que, sob o véu da desfaçatez oculta na superfície de expressões silentes, a dor do existir.
Evasão de si seria talvez a definição comportamental atribuível àquele homem, menos por configurar expressão da realidade e mais por conveniência alheia, apontaria uma avaliação pouco isenta e generosa, mormente por ser repugnante a conjugação de zelo maledicente e a estúpida vocação de alguns em conceber juízos precipitados.
Se a designação acima não lhe é compatível, qual seja, uma alma que não discerne vigília e sonho, ao contrário, se esforça para produzir compulsivamente fantasias, seria mais justo talvez tentar compreendê-lo a partir da ruptura com a censura prévia e apressada opinião, uma vez que reside, na complexidade da alma humana, necessidades mais profundas que a mera manutenção do existir.
Entre o local de trabalho e o metrô, Apolo possui a liberdade dos que cruzam o intransponível, pois, em cada rosto observado na rua percebe um traço distinto e ao mesmo tempo comum, uma vez que, não importando se o caminhante sai da padaria ou local de trabalho, é perceptível a inquietude das pessoas apenas por ser, por existir, e isso o convence acerca do que nos assemelha essencialmente, e que o provoca a observar a condição humana sob o esteio da solidariedade.
Após algum esforço para se erguer do colchão, numa cruzada em que a vontade de se manter na conveniente inconsciência do sono será vencida pela pulsão de sobrevivência que gravita o senso de realidade - afinal de contas "Do suor" provém o pão -, o caminhante, após dar cumprimento aos cuidados matutinos, segue em direção ao palco em que atuará do modo mais digno que puder.
A ida ao trabalho não lhe trás exatamente alegria, mas, responsabilidade e desejo de ressignificar a atividade consistente em atender pessoas ao telefone, perfazendo a principal razão a permanecer atuando.
De casa ao ponto de ônibus e deste à estação de metrô, em cujo percurso o homem se despede do ócio por meio do estímulo à fecunda imaginação, alcança o trecho que atravessa todos os dias após se retirar com incomum rapidez, mormente para quem se aproxima dos 50 anos.
Diversamente à caminhada de retorno, ou seja, de saída da empresa em que trabalha em horário crepuscular à estação que então se converte, por inversão de movimento, em seu primeiro contato com o transporte público, a ida, a despeito de consistir no mesmo percurso lhe propõe pouco significado, pois, a travessia de retorno sim lhe sugere, espontânea e misteriosamente, infindáveis possibilidades oníricas.
Imaginar é sua condição inescapável, exercício que revigora a alma, porém, estranhamente aquele percurso curto, à semelhança da semente que germina e arrebenta em brotos, lhe oxigena a imaginação de modo tão arrebatador a ponto de torná-lo, em fração de segundos, um personagem cinematográfico, um pugilista hábil ou até mesmo um músico cujo carisma e talento são capazes de produzir uma atmosfera de alegria e raro refrigério.
Num piscar de olhos o homem possui a voz poderosamente angelical de Stevie wonder, a titânica força de Myke Tyson, a habilidade de Maradona e a performance de Denzel Washington, cujo prodígio imaginativo, num diminuto lapso de tempo, o faz experimentar uma vertigem mais aguda que qualquer montanha russa.
Ao contrário da maioria das pessoas, Apolo não enxerga a existência em sua totalidade, e sim em bloco; a arquitetura de sua memória se realiza a partir de traços momentâneos - grande parte relevante mesmo quando a tristeza se impunha implacavelmente; e, quando a alegria encontrava lugar de repouso na alma, quase sempre era em razão de sensações oriundas do poder de sua imaginação - companheira indivorciável.
Este homem, em cuja caminhada até uma estação de metrô refaz, desfaz e novamente reconstrói sua história - ainda que por meio do delírio voluntário -, nos ensina algo sobre a inevitabilidade da morte e a ausência de controle absoluto sobre o corpo, uma vez que tal condição não apenas nos revela impotentes, mas, igual e contraditoriamente grandes, pela possibilidade de efetuarmos o enfrentamento a essa impotência no campo em que a mesma se faz pequena, qual seja, na seara dos sonhos, pois lá nos tornaremos o que quisermos.
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