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Distopia e Desigualdade em "O Poço"

O mundo manifesta, nos subterrâneos da existência, e num momento em que o distanciamento se impõe como condição inescapável, a profunda desigualdade no interior dos diversos extratos sociais, cuja denúncia se expressa por diversos meios, dos quais destaca-se o cinema que, no ano de 2019 nos ofertou a possibilidade de enxergarmos, de maneira chocantemente distópica, o universo de abissais contradições  imanentes ao modelo de sociedade legada pelo capital através do filme "O poço", cujo roteiro nos orienta para o enfrentamento de uma questão: nas fissuras do esmagamento existencial resultante da luta pela sobrevivência, restaria espaço ao nascimento de uma  solidariedade capaz de promover a superação das correntes que nos mantém tão desiguais? 

De produção espanhola, o filme em comento informa, sob narrativa surrealista, como  a desconstrução humana se realiza a partir do vil ataque à dignidade, à medida que o ambiente de uma prisão, forjado a reproduzir um poço, no qual, ocupar as celas mais profundas significaria a morte ou no máximo nutrir-se dos dejetos que os ocupantes das galerias superiores produziam como manifestação de desprezo, reproduz a lógica do modelo capitalista vigente.

A centralidade do roteiro reside em expor as vísceras da condição humana, a partir da noção do quão negligenciamos a real estrutura que, acima de nós, produz a miséria da desigualdade, que se orienta para a diluição da dignidade a ponto de que os indivíduos não se reconheçam, a fim de que retroajam ao estado primal, no qual o grotesco se justifica em razão da necessidade de sobrevivência, ou seja, ao cumprimento dos apetites instintuais.

A narrativa nos fornece personagens arquetípicos, tais como a figura do protagonista que se insurge contra a desumanização perversa, demonstrando, no bojo do caos, a perplexidade que o mentem em contato com valores que o orientam à ruptura com a lógica do poço; seu companheiro de cela a exprimir a consciência dos que não carregam empatia; uma interna marcada pela culpa de servir outrora àquela prisão; um deficiente/mentor que discerne, com sabedoria,  as estratégias a deflagrar alguma coesão aos internos; um homem que, sensibilizado, adere à ideia de criar um consenso quanto à disciplina alimentar bem como uma ex atriz, esmagada por aquela realidade, alterna entre os diversos andares à procura de um suposto filho.

A estrutura prisional é composta por uma cozinha, cujos operários, subordinados a  uma liderança imediata que os supervisiona obsessivamente para que o cardápio a ser ofertado aos internos/presos resulte da impecabilidade operativa, traduz as entranhas de um sistema que, transposto à realidade, revela o quão superficiais são as condições materiais de existência, nas quais o mais relevante é o parecer ser, enquanto a essência ou genuína expressão relacional despreza a empatia, elemento que melhor define a qualidade das relações humanas.

O mundo capitalista, manifesto como um microcosmo prisional sob a arquitetura de um poço, marcado pela relação de ascensão e declínio, em que os internos desse sistema compreendem suas respectivas existências, diluídas pela desumanização sob a ótica exclusiva de manter-se vivos sem que o outro nada signifique, parece nos provocar, dentre outras questões, ao enfrentamento do desafio presente na necessidade de descobrirmos se em nós há disposição e capacidade, verdadeiramente, de avançarmos para o entendimento de que o exacerbado individualismo que nos isola e ao qual nos submetemos pelo apelo do capital, perfaz uma das mais esmagadoras chagas a cooperar com a profunda desigualdade que, ao invés de produzir espíritos solidários, promove tanta insensibilidade.



Desejoso de que, nas brechas que o sistema inescapavelmente expõe, possamos caminhar em comunhão.

Em algum lugar da Via Láctea,

Maurício.


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