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O Amargo Sincero e a Doce Cordialidade

O paladar compreende um dos sentidos que melhor atendem às pulsões humanas, pois, serve como uma espécie de tradutor dos elementos que se incorporam ao organismo, para os quais, além do componente gustativo filtrar substâncias pelas impressões que o contato das papilas com os alimentos propicia, à semelhança de um sentinela, que, rigorosa e diligentemente mantém-se atento aos que adentram sua cidadela, molda, igualmente, nossas predileções por um tipo de controle associado à subjetividade.

Transposta tal apreensão ao terreno da sociabilidade, marcada pela ideia de que o fator subjetivo assume relevância vital aos nossos gostos, cumpre investigar as razões pelas quais os indivíduos tendem a negar suas preferências/opiniões em nome de um consenso conveniente, cujo efeito além de operar para manutenção circunstancial da cordialidade, sob determinadas circunstâncias, também determina a demolição do caráter, à medida que impõe o cárcere manifesto na obtenção de simpatias resultante da ausência de sinceridade como condição existencial.

A adoção da razoabilidade que nossa comunicação se encarrega de realizar para que nossas relações se mantenham sob mínima higidez está na base da sociabilidade humana, a qual demanda esforço no sentido de que nossos instintos egoísticos sejam represados em nome do equilíbrio relacional, razão por que, observa-se que o conflito de interesses é talvez a mais fundamental expressão da diversidade.

Nossas vontades, em consonância com a imagem preambularmente sugerida, são resultado do que nos dá conforto, prazer; portanto, a seletividade aplicada para determinação do que seja palatável, gostoso ou mesmo tolerável, é condição que define nossas opiniões em conformidade com os efeitos/percepção que os alimentos provocam tais como doce e amargo.

Na dimensão das relações, a absorção dos conteúdos que definirão nossas opiniões são fruto dos debates que travamos, das leituras e (i)reflexões que produzimos, os quais, escrutinados e eventualmente acrescidos de novas percepções, expõem ao menos parte do que nos orienta. Contudo, é comum, em que pese a relevância da diversidade de opiniões, que muitos recuem em suas convicções/preferências em nome de não condoer seus interlocutores, cujo melindre parece ganhar mais importância que a necessária maturidade relacional.

Sob tal perspectiva, pessoas confundem razoabilidade com hipocrisia, significando afirmar a necessidade de reconhecer que algumas circunstâncias demandam sabedoria na condução de relações assemelhadas a verdadeiros campos minados, para os quais ponderação e equilíbrio na gestão dialogal são fundamentais, o que não significa transigir com desfaçatez desleal, à medida que, adotar a discordância quando a opinião diversa colidir com a nossa em regra será uma medida saneadora aos conflitos, mesmo que o gosto amargo da sinceridade não receba imediato acolhimento.

O sabor dos alimentos, à luz de nossa íntima apreensão, pode ser bom ou ruim (excetuada a água, cuja insipidez é condição intrínseca), em cujo paladar reside a mediação fundamental para que elejamos o que se mostra prazeroso ou repugnante.  A simplicidade dessa metáfora é oportunamente conveniente, pois, diversamente do que ocorre no processo gustativo, as relações humanas são marcadas por maior complexidade em seu exercício, não apenas na definição de nossas predileções, mas, sobretudo, quando somos confrontados com a necessidade de manutenção dos vínculos, para os quais há quem violente a consciência com a mácula do embuste que empreende verdadeira ginástica argumentativa de modo a compatibilizar posições antagônicas e inconciliáveis, com vistas a um falso acordo, em cujo mel consensual habita o conluio amargo que encarcera e deflagra a demolição do caráter.  


Em Algum Lugar na Via Láctea,

Maurício.















  

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