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A RAZOABILIDADE COMO FREIO À INJUSTIÇA


As sociedades sempre se serviram de regras para sua coesão, expressa na busca por unidade e harmonia aos atos humanos, os quais, pelo avançar do tempo tornaram-se sobremodo complexos, haja vista o desenvolvimento da tecnologia e relações entre os indivíduos. As regras nos alcançam em todos os tempos e lugares: na infância, no seio familiar, no trabalho, escola, religião; elas constituem as condições às nossas ações; são, portanto, o meio ao alcance ou realização de algo, cuja natureza disciplinar, embora determine obediência para o fluxo regular das condutas, operando em desacordo com a razoabilidade implicará frutos de injustiça.

Este propósito regulatório a caracterizar uma regra não afasta eventuais rejeições, pois, a aplicação da mesma, ao requerer observância ou subordinação, pode não realizar-se acompanhada da necessária razoabilidade, princípio sem o qual qualquer elemento de caráter imperativo tornar-se-á um fardo pesado. A ausência de razoabilidade não raro converte a regra em injustiça, subvertendo seu escopo fundamental, qual seja realizar-se como meio pelo qual os atos humanos se concretizam.

Sob este olhar, consideremos o fato de que a sociedade, mesmo em seu estado primal, não poderia prescindir do regramento das condutas de seus agentes, pois, a inexistência de regras para caçar, por exemplo, comprometeria sua subsistência tendo em vista a relevância da disciplina em uma comunidade dependente do acordo e cooperação do grupo. Em consonância, imaginar a sociedade contemporânea carente de um arcabouço jurídico para harmonizar seus interesses significaria enorme retrocesso, pois seria assistir ao reinado da auto-tutela, meio ao qual a experiência humana mostrou-se suficientemente hábil para abandonar, exatamente pela imanência da injustiça nesse modelo de composição de conflitos, o qual se caracterizou em outorgar ao ofendido, o direito de exigir a reparação de um dano suportado por meio da vingança privada.

Tal moldura acima referenciada confere relevância à existência de regras ao regular exercício da vida societária, as quais se manifestam em todos os níveis; sua aplicação, no entanto, sobretudo em tempos de enormes complexidades sociais exige acompanhar-se da razoabilidade a fim de que haja credibilidade e solidez nas instituições humanas.

Os atos humanos, com espeque na realização da justiça, perfazem objeto do qual os estudiosos sempre se ocuparam, cujo exemplo dos mais destacados encontra-se em Platão, em sua obra A República. Este referencial tão importante ao pensamento filosófico dedica-se à busca do conceito de justiça, a qual compreende uma empresa árdua. Destaque-se que o autor, em célebre narrativa deste diálogo Socrático, revela que seu mestre (Sócrates), a certa altura, parece seduzir-se pela idéia de que a melhor definição possível consiste em reconhecer que a justiça assemelha-se às funções orgânicas, pois, se reconhecermos a perfeição expressa nos atributos dos órgãos de nosso corpo, cuja funcionalidade ancora-se na constituição simétrica de cada componente anatômico, aovinculando-se tal assertiva, analogamente,  fato de possibilitar o nariz o ato respiratório, os olhos a visão, os ouvidos a audição, enxergaríamos os atos humanos em pleno acordo com sua vocação para a justiça, assim como os órgãos, em suas atividades vitais, permitem o pulsar da vida.

Não obstante o recuo de Sócrates diante de tal assertiva, não deixa de nos encantar uma concepção de justiça a partir da complexa e ao mesmo tempo simples realização de nossas funções orgânicas, cuja semelhança de pensamento coincide com Paulo de Tarso, ou simplesmente apóstolo Paulo, o qual, em sua visão orgânica da comunidade cristã, faz uso da analogia do corpo humano para designar que a igreja deve conduzir-se em conformidade com as funções orgânicas, com vistas a alcançar um ordenamento ou harmonia relacional, de modo que a justeza ou coesão funcional daquela Eclésia gerasse comunhão plena.

Neste ambiente, a conduta realizar-se-ia sob o prisma da justiça, uma vez que a Graça multiforme de Cristo propõe observância à cooperação individual, pois desta depende a saúde e constituição orgânica da comunidade, sobretudo ao constatarmos o preciso liame entre este escólio com o Sermão da montanha (Mateus: Cap. 5), no qual o Messias afirmou que bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão fartos, afirmação da qual extraímos a noção de que a fartura de justiça torna-se possível com a prática da justiça. Ou seja, justiça gera justiça.

Sob esta perspectiva, a finalidade dos nossos atos aponta à realização da justiça, para cujo alcance há regras de observância explícitas e implícitas, cuja existência vincula-se aos princípios, muitos dos quais universalmente consagrados. A título de exemplo, ao realizar determinado tribunal a publicação de uma decisão judicial, não o fará sem abertura de prazo a fim de que as partes litigantes se manifestem a respeito, numa clara demonstração de que o procedimento publicação observa a regra da abertura de prazo à manifestação das partes, tendo em vista a garantia e princípio constitucional do contraditório (art.5º, LV, Constituição federal). A regra, nesse caso, submete-se ao princípio, o qual guarda relação com a razoabilidade, diretriz igualmente principiológica à medida que, no estado democrático vige o direito a contra-razoar em face do que se considera injusto.

Tem-se, a partir deste quadro, em certos casos, a preponderância da razoabilidade sobre a regra, pois esta, sendo procedimento a possibilitar a realização dos atos humanos deve coadunar-se com aquela, sob pena de que o injusto prevaleça.

Tendo em foco os entes históricos supramencionados, observa-se que os mesmos, em suas respectivas trajetórias, colidiram com regras institucionalmente estabelecidas, as quais, embora de observância obrigatória, foram justamente relativizadas em razão da flagrante colisão com a razoabilidade, princípio em nome do qual Jesus, por exemplo, não conferia qualquer valor aos rígidos costumes dos religiosos de sua época, tais como lavar as mãos antes das refeições, observância ao sedentarismo sábatico, a rejeição aos samaritanos, dos quais os judeus nutriam especial desprezo; e este contraponto operado pelo Messias destinava-se ao protagonismo da justiça.

Séculos antes, Sócrates, acusado falsamente de corromper a sociedade ateniense, fora condenado a ingerir a sicuta, líquido letal, haja vista não submeter-se à condição imposta pelo tribunal, qual seja de negar a prática filosófica pelo silêncio, imposição que o fez optar pela morte. Ora, em tal exemplo temos a realização de um tribunal legalmente previsto, o qual, em seu exercício, observara as regras instituídas à sua existência; contudo, a injustiça manifesta pela inobservância ao direito de refutação apta a influir na decisão, tendo em conta o cerceamento de defesa, resta claro que tais regras não operaram em favor da justiça ao não possibilitar o contraditório e a ampla defesa substanciais, ou seja, capazes de influir verdadeiramente na sentença, uma vez que aquele pretório determinou unilateralmente que o filósofo abandonasse sua vocação, qual seja defender o direito de construir suas próprias convicções ao mesmo tempo em que desconstruía as crenças da média.

Em complemento, nos detenhamos no exemplo do apóstolo Paulo, o qual, em célebre controvérsia com líderes da igreja primitiva cristã, rejeitou a idéia de que os gentios, povos não descendentes da linhagem abrâmica, que se convertiam à fé em Cristo, deveriam submeter-se à circuncisão, prática consistente em corte do prepúcio, película do órgão genital masculino. A postura de Paulo não limitou-se à rejeição de tal prática, preferindo, além de rechaçá-la, resignificar seu conteúdo, preceituando, em uma de suas cartas, que a circuncisão opera-se no coração de todo aquele que alcança o entendimento do evangelho. A regra estava lá, cujo imperativo a maioria não ousara questionar, no entanto, o aplicativo prático de tal dogma fora deslocado para a órbita da interioridade humana, na qual, nossas verdadeiras intenções são geradas.

Por tais razões, resta indubitável a relevância de regras à convivência social, as quais, em suas variadas formas, condicionam nossos propósitos e ações; destarte, a aplicação irrazoável de uma regra configura um passo à validação da injustiça. Invoca-se, para refrear tal estado a razoabilidade, cujo imperativo se impõe como meio para se atingir a pacificação em todos os níveis, seja na família, ambientes religiosos, educacionais, ou seja, em todas as dimensões da existência, às quais, a observância da razoabilidade ao regramento da conduta humana sedimenta a busca ao ideal de justiça.

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