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Cartas Marcadas

O capitalismo, nome cuja menção transcende a ideia de sistema econômico, visto converter-se num ente incorporado à existência de modo integral,  surge na esteira das transformações sociais que remontam à queda do feudalismo, num processo complexo e gradual, marcado pela inescapável tendência de dominar o modo de produção no ocidente. Sua evolução extraordinária, se desenvolve a partir da mudança que a propriedade privada sofre em seu caráter, uma vez assumir feição produtiva redefinindo a relação senhor - vassalo haja vista o salário surgir como contrapartida do conteúdo de tal interação, ao lado do fenômeno das cercas nos latifúndios e produção de lã.

Falar em evolução capitalista significa reconhecer as profundas mudanças na relação dos entes acima aludidos, quais sejam, o proprietário de terras as quais inicialmente passaram a se notabilizar pela criação de ovelhas e consequente produção de lã e uma classe trabalhadora que, mesmo sob condições precárias, experimentam a modalidade salarial de contrapartida pelo trabalho que realizam, somando-se a isto diversos outros fatores que levam ao protagonismo de uma classe social que caminha em direção à expansão do capital de modo irretroativo.

O capital, tomado em sua acepção extrema determina imensas contradições, haja vista o dogma da liberdade econômica, desacompanhado  da presença estratégica do estado em determinados domínios promover grandes desigualdades. A estrutura socialista na economia, cuja classificação exige olhar apurado de modo a refletir as complexidades que a caracterizam contemporaneamente, notadamente pelo exemplo chinês, avaliado como potência mundial que mobilizou as forças produtivas como jamais visto na história, é acusada de mitigar quando não suprimir a liberdade em nome da planificação econômica expressa pelo domínio estatal dos meios de produção.

Com a social democracia despontando como alternativa aos extremos, corrente que se descola do socialismo em razão da prevalência do apego nacional em renúncia à expansão do projeto de sociedade socialista universal, em que pese promover o estado de bem estar social (well fire state) como elemento de equilíbrio e contenção das desigualdades, sofreu significativo abalo em decorrência de substanciais demandas de uma sociedade europeia que precisa lidar com o aumento da expectativa de vida de sua população, bem como se vê diante da contingência de investimentos/custos para prover condições seguras à existência dos nacionais e imigrantes com necessidades cada vez mais crescentes, uma vez que o neoliberalismo igualmente esgrima para o estabelecimento de um livre mercado em contraposição com seu oposto, o socialismo.

Capitalismo, socialismo, social democracia, forças produtivas, trabalhadores e neoliberais compreendem elementos de um processo doloroso da caminhada humana na tentativa de alcançar, sob o embate ideológico, uma concepção política de sociedade que, ao final parece nos mostrar ser impossível prevalecer sem que algumas características dos modelos antagônicos sejam combinadas, ou seja, capaz de, a um só tempo, proporcionar alguma liberdade para o exercício da individualidade, bem como um padrão geral que se inscreva na tessitura do "contrato social" de convivência a fim de que os atores se movam sob parâmetros previamente definidos - contemporaneamente convencionou-se a constituição como referência ao alcance da coesão social.

Marcado pela correlação de força manifesta na polarização dos blocos hegemônicos a expressar a realidade geopolítica, o século XX foi pródigo em nos ofertar um riquíssimo debate político-econômico que expôs as contradições de ambas as realidades - capitalista e socialista -; em que a narrativa da segunda corrente voltada para a demonização do chamado "comunismo real", expresso na experiência da URSS logrou êxito, haja vista conseguir, por meio de estratégias diversas dentre as quais destaca-se a cultural, transformar o espectro vermelho que estabeleceu seu cetro na Eurásia em vilão que capitulou em 1990, cuja queda do muro de Berlim repercutiu como expressão eloquentemente simbólica de tal marco histórico. 

A década acima aludida foi marcada pelo anúncio do suposto fim da história, concepção firmada na ideia de que o capitalismo seria a expressão do modelo ideal às sociedades humanas, tendo, portanto, atingido o ápice do processo histórico na queda do muro. Ato contínuo, o capital, sob tentáculos diversos, busca metamorfosear as expressões que lhe dão sua atual feição (financeirização da economia) eminentemente financeira, em prejuízo das forças reais de produção (indústria), as quais, demonstram pujança justamente no modelo socialista diabolizado pelo ocidente capitalista.

A vassalagem que outrora caracterizou o feudalismo, cedeu lugar a novas formas de exploração do trabalho humano com a ascensão e afirmação do capital, cujo propósito está orientado para a expansão do lucro. Mas a pergunta que se impõe é: a quem e a que preço tal projeto de expansão permanente se destina sob os moldes atuais?

Na raiz dessa questão reside a necessidade de refletir sobre a financeirização da economia, a qual traduz fenômeno cuja contradição insuperável compreende o fato de que sobre papéis/títulos é atribuído valor de maneira ficcional e sofisticada, na qual, a abertura de capitais em bolsas por empresas muitas vezes não resulta de sua real musculatura econômica, - excetuando algumas poucas - mas, da construção artificial especulativa desse verdadeiro "cassino", em que a experiência do "investimento" introduz um universo ilusório aos apostadores pequenos e médios, e uma estrutura em que os mecanismos viciantes de aposta produzem cenários de ganhos recorrentes e significativos apenas aos grandes "investidores", entes parasitários que gozam de informações privilegiadas (cartas marcadas) que, em sua sanha persecutória por lucro, revelam-se os reais destinatários dessa vampiresca realidade.

Este quadro em algum momento cria as condições para a exposição visceral das contradições desse famigerado modelo, o qual, após a atual crise imposta pela guerra híbrida de suporte biológico, propiciará um agudo ou mesmo revolucionário debate acerca das amarras que o capital, sob molde ultra neoliberal, impõe à própria economia para a qual invoca liberdade, haja vista gerar, em suas entranhas, estratégias de articulação cujo subproduto identifica-se com dados ideológicos tais como meritocracia e liberdade perante a lei, sob a intangibilidade do suporte econômico de subordinação total aos preceitos do modelo do capital financeiro.


Em algum lugar da Via Láctea, olhando as vísceras do sistema e profundamente insatisfeito com suas próprias contradições,
Maurício Alves.     

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